Há exatos quarenta anos, o deputado democrata e ativista ambiental Al Gore presidiu a primeira série de audiências na Câmara sobre a necessidade de os Estados Unidos frearem as emissões de carbono e outros poluentes. Gore, vice-presidente de Bill Clinton, viria a ganhar um Nobel da Paz pela defesa do meio ambiente e um Oscar pelo documentário Uma Verdade Inconveniente, mas nada disso dobrou o Congresso, que derrotou pacote após pacote de medidas para deter o aquecimento global. Joe Biden assumiu com a promessa de encaminhar o mais ambicioso projeto nesse sentido, mas o pacotaço de 2,2 trilhões de dólares também sucumbiu diante da resistência dos congressistas. Pois corta daqui, cede dali, adapta acolá e, quando a esperança de um avanço a curto prazo parecia perdida, eis que o Senado finalmente aprovou o projeto de lei para combater mudanças climáticas mais significativo da história americana. “Até que enfim derrubamos a barreira. Nunca imaginei que demoraria tanto”, comemorou Gore, hoje afastado da política.
O projeto, que também prevê uma expansão do sistema de saúde pública, é um divisor de águas para a transição energética. Do pacote de 740 bilhões de dólares, 369 bilhões serão investidos para combater a crise do clima na próxima década. O objetivo é reduzir as emissões de gases do efeito estufa do segundo maior poluidor mundial (atrás apenas da China) em 40% até 2030, através de um complexo quebra-cabeça de créditos e isenções fiscais. Entre as providências planejadas, uma fatia de 60 bilhões de dólares em descontos de impostos foi destinada a empresas que se dediquem a expandir a produção de energia eólica e solar, aprimorar as técnicas de sequestro de carbono e ampliar a fabricação de baterias (quem comprar um carro elétrico novo também receberá descontos de até 7 500 dólares, uma prática já adotada em alguns estados). Ainda está prevista a injeção de recursos nas vastas áreas afetadas pela seca e por outros efeitos do aquecimento e penalidades a quem descumprir acordos antipoluição.
Para arcar com o aumento mastodôntico dos gastos públicos contido no projeto, foi criado, entre outros tributos, um imposto mínimo de 15% sobre os ganhos de grandes corporações. Pelo conjunto da obra, o pacote coloca os Estados Unidos na liderança mundial do combate às mudanças climáticas. “Reduzir em 40% as emissões de poluentes aqui representa um corte de 5% no total global. O que mais importa, porém, é que ações climáticas de impacto passam a ser a nova norma”, avalia Ronald Mitchell, professor de política ambiental na Universidade do Oregon. A aprovação do projeto foi uma excepcional vitória para Biden, que viu afundar no pântano da polarização política praticamente tudo o que apresentou ao Congresso (as únicas exceções foram o pacote trilionário na pandemia e o que incentiva empresas americanas a competir com a China) e amarga menos de 40% de popularidade — isso, tendo pela frente uma eleição para a renovação de toda a Câmara e um terço do Senado na qual as pesquisas enterram as chances democratas.
A própria aprovação do pacote, intitulado Lei para Reduzir a Inflação, foi uma epopeia. No Senado dividido ao meio — cinquenta republicanos, cinquenta democratas e voto de desempate da vice-presidente Kamala Harris —, a Casa Branca precisava da lealdade de toda a sua bancada. A liderança passou meses negociando internamente para vencer as oposições de dois senadores do partido — Joe Manchin, ligado aos setores de carvão e petróleo, e Kyrsten Sinema, com laços no mercado financeiro. Assim que conseguiu, levou o pacote ao plenário, em sessão aberta a toda e qualquer proposta de emenda, única maneira de evitar manobras de obstrução. A sessão foi iniciada no começo da noite de sábado 6, e 36 horas e 41 emendas (a maioria derrotada) depois, os democratas cantaram vitória às 15h30 de domingo. Agora o projeto vai para a Câmara (onde a maioria de seis cadeiras é mais confortável enquanto durar) e de lá para a sanção de Biden.
A ala “esquerda” do Partido Democrata saiu insatisfeita (“Não chegamos nem perto de abordar os problemas”, disparou o senador Bernie Sanders) e supõe-se que as medidas, ainda que aumentem a aprovação do presidente, terão pouco efeito prático nas preferências do eleitorado. Caso os republicanos tomem o controle do Congresso, como está previsto, a implementação da lei pode acabar prejudicada em algum grau. Seja como for, o avanço é inegável. “Não podemos deixar que o perfeito seja inimigo do bom, e esse é sem dúvida um bom projeto”, avalia Samantha Gross, diretora de iniciativas para o clima do Brookings Institution. O planeta respira um pouco mais aliviado.
Publicado em VEJA de 17 de agosto de 2022, edição nº 2802