Situada ao pé das montanhas da Cordilheira da Cascata, cercada de florestas exuberantes e rios caudalosos, a cidade de Lytton, na Colúmbia Britânica, província no sudoeste do Canadá, era descrita nas brochuras para turistas como “o lugar ideal para se conectar com a natureza”. Nos primeiros dias de julho, porém, a natureza, maltratada por décadas de desleixo e maus-tratos, deu um basta — e a idílica cidadezinha de 250 habitantes virou um inferno. Durante três dias consecutivos, a temperatura beirou os 50 graus, algo jamais observado na região. Estorricada, a mata produziu incêndios incontroláveis, com labaredas de mais de 5 metros de altura, e os moradores tiveram quinze minutos para fugir antes que as casas e os estabelecimentos comerciais — todos eles, sem exceção — virassem cinzas. Escurecido por nuvens de fumaça, o céu produziu uma violenta tempestade de raios, que desencadeou novos incêndios.
A catástrofe que se abateu sobre Lytton é decorrência da pior estiagem da história da América do Norte. Iniciada em 2020, a seca se estende do México ao Alasca, deve durar várias décadas e foi agravada nas últimas semanas pela formação de uma “cúpula de calor” — um sistema de alta pressão que atua como uma tampa de panela e retém o aquecimento. Em questão de dias, ao menos 600 pessoas morreram na faixa escaldante ao longo do Pacífico. Em Portland, a principal cidade do estado americano do Oregon, o sistema de VLT teve de ser suspenso porque os cabos de energia derreteram. No Arizona e em Nevada, a população foi orientada a não sair às ruas nas horas de sol mais forte porque o contato com o asfalto poderia provocar queimaduras de terceiro grau. Na Califórnia sem chuvas há meses, a seca vai de “extrema” a “excepcional”.
Os recordes climáticos têm sido a marca de 2021 no mundo todo, inclusive no Brasil, que atravessa a mais severa estiagem em 91 anos, vê minguar suas represas e está à beira de um colapso na produção de energia. Neste verão no Hemisfério Norte, a temperatura se mantém acima da média há sessenta dias em boa parte da Europa — os termômetros na Finlândia, Noruega e Suécia têm registrado 35 graus em regiões localizadas dentro do normalmente gelado Círculo Polar Ártico. Em consequência do calor muito além do normal, desastres pipocam por todo o continente. Na República Tcheca, um tornado repentino, o mais intenso já visto no país, causou destruição em sete cidades e deixou cinco mortos e 200 feridos. Na Ilha de Chipre, no Mediterrâneo, a luta é para conter os piores incêndios da história. A canícula se estende pelo norte da Ásia: meteorologistas russos registraram, estupefatos, abrasadores 48 graus na cidade de Verkhojansk, em plena Sibéria — isso mesmo, na Sibéria. Dando um toque de alegria em meio ao caos, os siberianos, que passam quase o ano todo recolhidos em casa por causa do frio intenso, aproveitaram o sol lotando os parques e as margens dos rios e lagos. Também a África enfrenta a pior seca em quarenta anos — metade dos 15 milhões de habitantes do Zimbábue já depende de ajuda externa para se alimentar.
Na ponta sudeste dos Estados Unidos, o problema é o avanço progressivo das marés, capaz de inundar as ruas de Miami e os condomínios de ricaços em Key West, no litoral da Flórida, mesmo em dias de tempo bom. O fenômeno pode ter contribuído para o desmoronamento de um edifício na área metropolitana de Miami — segundo testemunhas, a garagem do prédio era frequentemente inundada pela água do mar. “Temos de levar a sério os acontecimentos recentes. Eles vêm sendo muito piores do que podíamos antecipar”, diz Michael Mann, climatologista do Earth System Science Center, da Universidade da Pensilvânia.
O mesmo tom de alerta permeia o aguardado relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), um organismo da ONU encarregado de abastecer o planeta de informações científicas sobre os efeitos do aquecimento global e outros estragos impingidos ao meio ambiente, os riscos que eles acarretam e as soluções possíveis. O documento de 4 000 páginas, elaborado por especialistas do mundo todo, tem sua divulgação prevista para 2022, mas parte do conteúdo foi vazada à imprensa em junho — e é de causar arrepios. Lá está dito que mesmo que as emissões dos gases que produzem o efeito estufa sejam efetivamente reduzidas, como prometem os países mais poluidores, as mudanças climáticas vão alterar significativamente a vida na Terra nas próximas décadas. “Extinção de espécies, disseminação de doenças, calor insuportável, colapso do ecossistema, cidades ameaçadas pela elevação do mar — estes e outros impactos devastadores serão realidade antes que os que estão nascendo agora cheguem aos 30 anos”, diz um trecho do relatório. “De fato, não fossem as emissões de CO2 dos carros, da pecuária e das indústrias, não teríamos tantas aberrações climáticas se repetindo. Uma seca extrema como a atual é um evento raríssimo, que antes acontecia uma vez por milênio”, diz Carlo Buontempo, diretor do Copernicus Climate Change Service, instituto de pesquisa do clima financiado pela União Europeia.
Os cientistas do IPCC fizeram 3 milhões de simulações de cenários com base na subida da média global de temperatura prevista para os próximos anos — uma escalada que começou em meados do século passado e só faz se intensificar (veja o gráfico). Sua conclusão: os efeitos do aquecimento global serão sentidos mesmo que a elevação do termômetro não ultrapasse os 2 graus acima da média no século XIX, antes da industrialização — limite até aqui considerado relativamente seguro e que serve de base para tratados internacionais, como o Acordo de Paris. O IPCC identifica doze pontos críticos — os chamados tipping points — que, uma vez ultrapassados, provocarão mudanças impossíveis de ser revertidas e graves o suficiente para, eventualmente, comprometer a vida na Terra.
Um dos pontos de não retorno destacados no relatório é a destruição da Amazônia: o efeito estufa, combinado com desmatamento e queimadas, pode alterar o padrão de chuvas e converter metade da floresta tropical em savana rasteira, com implicações dramáticas para o resto do Brasil. Os chamados “rios voadores”, canais de umidade que percorrem o céu e fazem a chuva ser abundante em quase todo o território nacional, ficariam comprometidos, deixando o Sudeste — aí incluídas metrópoles como Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte — mais quente e seco e acelerando a desertificação do Nordeste. Embora ainda não configure um desastre ecológico de tamanha dimensão, a perda de cobertura vegetal já em curso na Amazônia é um dos fatores que aprofundam a seca atual no Centro-Sul do país. Segundo avaliação do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), o nível dos reservatórios hidrelétricos do Centro-Oeste e Sudeste deve despencar até novembro para 10% da capacidade, porcentual considerado crítico. O lago de Furnas, conhecido como o “mar de Minas Gerais”, recuou 8 quilômetros e está salpicado de bancos de areia. A falta de chuva afeta ainda a produção de café, açúcar e laranja. “São alterações que tornam a vida imprevisível e impactam profundamente a economia”, diz Ricarda Winkelmann, do Potsdam Institute for Climate Impact Research, da Alemanha. Outro ponto crítico se situa na calota polar que recobre a Groenlândia. Se ela derreter, haverá uma desaceleração das correntes do Oceano Atlântico capaz de alterar o clima em todo o globo terrestre. As águas no entorno da Antártica, no outro extremo do planeta, se aquecerão, derretendo mais gelo ainda, um ciclo que elevaria o nível do mar acima dos 60 centímetros previstos para as próximas décadas — por si só capaz de alagar permanentemente boa parte de Veneza. “É como um efeito dominó, com consequências regionais e globais devastadoras. São riscos que temos de evitar a qualquer custo”, observa o professor Bob Ward, do centro de pesquisa climática da London School of Economics.
Por mais alarmante que seja o cenário, dizem os especialistas, ainda há imensas e nítidas chances de virar o jogo — desde que governos e sociedade ajam rapidamente. A urgência de controlar o aquecimento global entrou definitivamente na agenda das economias mais avançadas (e poluentes), como Estados Unidos, Europa, China e Japão — o que já é um bom começo. O presidente americano Joe Biden anunciou uma meta ambiciosa na Cúpula do Clima que convocou em abril: pretende cortar as emissões de CO2 do país em 52%, em comparação a 2005, até o fim da década. Reunido poucas semanas depois, o G7, grupo dos sete países mais ricos, comprometeu-se não só a caminhar para a neutralidade em emissões como a investir 100 bilhões de dólares anualmente na promoção de iniciativas verdes em nações em desenvolvimento.
O objetivo mais amplo do G7 é que os pacotes de estímulos liberados durante a pandemia contribuam para reformatar a economia mundial em moldes sustentáveis. O tema será aprofundado durante a COP26, encontro mundial sobre clima programado pela ONU para novembro, em Glasgow, na Escócia. Ao mesmo tempo, especialistas ressaltam que mudanças individuais, como diminuir o consumo de carne, podem promover resultados extraordinários — a pecuária emite mais gases de efeito estufa do que todos os carros, aviões, trens e navios juntos. “Não estamos condenados. Sabemos o que fazer. É só uma questão de colocarmos esse conhecimento em prática”, avalia Myles Allen, professora de geossistemas da Universidade de Oxford. Quanto mais rápido, melhor.
Publicado em VEJA de 14 de julho de 2021, edição nº 2746