Durante duas semanas, a cidade de Glasgow, na Escócia, recebeu uma das maiores concentrações internacionais já vistas de autoridades e especialistas. Ali, 22 000 delegados de 189 países (só seis pequenas ilhas do Pacífico não compareceram) se reuniram na Cúpula Climática da ONU, a COP26, organizada para aglutinar metas e medidas destinadas a conter as cada vez mais rápidas mudanças que afetam — para pior — o clima do planeta. Com o objetivo primordial de frear o aumento da temperatura global em no máximo 1,5 grau, tomando como base os termômetros do período pré-Revolução Industrial, a conferência produziu vistosos anúncios multilaterais de complexa execução. O comunicado final, inclusive, alerta sobre o fato de que os objetivos até agora fixados são insuficientes e convoca outra cúpula, em 2023, para reavaliar resultados.
Mas em um aspecto a COP26 foi diferente: nunca os holofotes do mundo inteiro estiveram tão voltados para a questão do meio ambiente, o que deve elevar o tom das cobranças. Uma amostra foi dada na própria Glasgow: milhares de ativistas, a maioria jovens, tomaram as ruas para protestar contra a inércia dos governantes e exigir o fim do “blá-blá-blá” — como a sueca Greta Thunberg, aos 18 anos ainda uma pirralha incômoda, definiu as solenes tratativas nos salões da cúpula.
Entre as resoluções anunciadas (veja os destaques acima) estão metas mais ambiciosas para o fim das emissões de dióxido de carbono, o vilão CO2 do efeito estufa, bem como esforços para cortar dois agentes poluentes que afetam diretamente o Brasil, o gás metano e a queima das florestas. No total, 103 governos, entre eles o brasileiro, selaram a promessa de zerar o desmatamento até 2030 por meio de medidas que incluem a transferência de 100 bilhões de dólares anuais dos países ricos para os pobres, dinheiro a ser revertido em desenvolvimento econômico sustentável, que mantenha a mata de pé, proteja terras indígenas e tenha zero emissão de carbono. No caso do metano, gás oitenta vezes mais nocivo do que o CO2, liberado na decomposição do lixo, na atividade petrolífera e na pecuária intensiva, Estados Unidos e Europa lideraram um acordo para reduzir as emissões em 30%, em relação aos níveis de 2020, até o fim da década. Também foram confirmadas promessas seladas em uma minicúpula, no início do governo de Joe Biden, de acelerar as metas de queda na emissão de carbono.
Cada vez mais ativas nas ações de sustentabilidade, depois de décadas de inação, as instituições financeiras tiveram destaque em Glasgow. Responsável por administrar 130 trilhões de dólares em ativos, a coalizão Glasgow Financial Alliance for Net Zero, formada por fundos, bancos e seguradoras, comprometeu-se a eliminar a pegada de carbono de suas carteiras até 2050. A ação, quando examinada com lupa, é menos vistosa. A fiscalização do rastro de carbono no mercado financeiro exclui estatais, como a Saudi Aramco, petrolífera da Arábia Saudita, hoje responsáveis por metade das emissões de carbono do planeta.
No caso do controle do metano, dois dos maiores emissores, China e Rússia, não assinaram o pacto. O Brasil, por sua vez, posto contra a parede pela pressão de Estados Unidos e Europa, concordou em diminuir as emissões de metano sem antes discutir a promessa com o setor agropecuário e comprometeu-se com o desmatamento zero enquanto a destruição da Amazônia bate recordes, os povos indígenas vivem sob ameaça de grileiros e mineradores e a estrutura de fiscalização é desmantelada. “Assinar declarações é a parte mais fácil”, diz António Guterres, secretário-geral da ONU. “Mas é essencial que tudo o que foi dito seja implementado”, completa.
Para se tornar carbono zero nos próximos trinta anos, os mais de 130 países que já anunciaram a meta terão de aprofundar — e muito — as transformações em curso. De acordo com um relatório da Comissão de Transição Energética, de Londres, o custo para chegar à economia verde gira em torno de 2 trilhões de dólares anuais, cerca de 1,5% do PIB global. Há muito que fazer, mas a nova era industrial já começou e avança rapidamente. De carros movidos a energia elétrica a fazendas eólicas em alto-mar, pipocam mundo afora iniciativas para mudar o cotidiano da sociedade a curto prazo.
Uma recém-inaugurada usina de remoção de carbono instalada na Islândia, a Orca, projeta remover 4 000 toneladas do gás da atmosfera anualmente. Nos Estados Unidos, o governo Biden prevê investimentos trilionários em diversos setores verdes, boa parte direcionada à indústria de carros elétricos. “À medida que a economia se transforma, quem não descarbonizar estará dando um tiro no próprio pé”, adverte Jorge Viñuales, professor de direito e política ambiental da Universidade de Cambridge. Outra aposta promissora é o uso do hidrogênio como combustível — ao ser queimado, ele fornece duas vezes mais energia do que o gás natural, com a vantagem de que produz basicamente água como resíduo. Segundo o Hydrogen Council, consórcio que reúne os maiores do setor, existem 350 projetos de grande porte em andamento, um deles da petroleira Shell. A União Europeia fez do hidrogênio o motor de sua produção energética de carbono zero, prometendo injetar 560 bilhões de euros na mudança. “Ele poderá abastecer carros e aviões, fornecer energia à indústria e aquecer casas em um futuro próximo”, avalia Vaitea Cowan, da Enapter, empresa com sede em Berlim.
Outro exemplo transformador em curso é a reformulação da indústria do cimento. Misturado com água e areia, o cimento forma o concreto, base da construção civil e um dos maiores focos de poluição ambiental — 5 bilhões de toneladas de CO2 por ano, ou 8% do total. O cimento emite carbono em dois momentos: quando é pulverizado em grãos finos e, antes disso, quando calcário e argila são “cozidos” em fornos superaquecidos a 1 400 graus. Estudo do Imperial College, de Londres, mostra que é possível capturar o CO2 liberado aí antes que ele entre na atmosfera e em seguida armazená-lo no subsolo ou injetá-lo novamente no concreto, que fica ainda mais resistente. “Nossa função é acondicionar o CO2 de forma permanente, para que ele nunca consiga chegar à atmosfera”, diz Rob Niven, da empresa canadense CarbonCure, especializada no processo. Presente em 400 canteiros de obras pelo mundo, a CarbonCure recebe investimentos de multinacionais como a Amazon e a Microsoft e pretende, segundo Niven, capturar 500 milhões de toneladas de CO2 por ano. Como se vê, havendo seriedade e recursos, é possível sair do blá-blá-blá e começar já a despoluir o planeta.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764