Mudanças climáticas provocam efeito paradoxal em relíquias históricas
Ao mesmo tempo que trazem até cidades à tona, ameaçam preciosidades de remotas eras
Além de representar uma colossal ameaça para o futuro do planeta, as mudanças climáticas decorrentes do aquecimento global acabaram por produzir um paradoxo científico. De um lado, as aceleradas transformações no comportamento da temperatura têm ajudado a revelar tesouros arqueológicos escondidos pela ação implacável do tempo. De outro, podem condená-los ao desaparecimento. Secas, tempestades, inundações, tufões, vendavais e afins não só desequilibram a vida na Terra como provocam efeitos em todas as atividades humanas, inclusive aquelas de inestimável valor histórico. Na mesma medida em que uma cidade ocultada por milênios pode ressurgir, pinturas rupestres sucumbem aos efeitos perversos do clima.
No Iraque, a seca extrema que sufoca o país há meses trouxe à luz uma cidade da Idade do Bronze localizada às margens do Rio Tigre. Submersa há quatro décadas, sem jamais ter sido alvo de investigações arqueológicas, ela só reapareceu porque o reservatório de Mosul, o principal da região, foi esvaziado para salvar plantações em outras localidades. Com uma janela de oportunidade curta, os pesquisadores foram obrigados a trabalhar rápido para mapear o sítio. O que descobriram é uma preciosidade que pode contribuir para resgatar um período relevante. Com 3 400 anos, a cidade data do Império Mitani, que controlava grande parte do norte da Mesopotâmia e da Síria. Entre outros atributos, ela possuía uma enorme fortificação com muralhas e torres, um edifício de armazenamento de vários andares e até um complexo fabril. Cientistas alemães e curdos que atuaram na área suspeitam que deve ser a antiga Zakhiku, um importante centro urbano entre 1550 e 1350 antes da Era Comum.
Se no Iraque os humores da natureza desvendaram velhos segredos, na França o efeito é oposto. Com a elevação do nível do mar nas costas do país, um patrimônio local poderá sumir. Trata-se da Caverna Cosquer, uma gruta submarina situada no litoral de Marselha, com paredes cobertas por belas pinturas e gravuras rupestres. Pesquisadores acreditam que humanos visitaram o lugar, quando ainda não estava submerso, durante duas fases: 27 000 e 19 000 anos atrás. Eles deixaram ali registradas obras que retratam 200 animais de onze espécies, incluindo pinguins, cavalos e bisões. Os desenhos também trazem figuras humanas, símbolos sexuais, formas e impressões de mãos.
O nome da caverna é uma homenagem ao mergulhador francês Henri Cosquer, que a descobriu em 1985, ao explorar as águas profundas da costa marselhesa. Embora seja acessível apenas por um túnel subaquático de 125 metros de extensão, sua grande câmara se situa acima do nível do mar. Na entrada, que fica 32 metros abaixo da superfície, a linha da água subiu quase 13 centímetros desde 2011, e continua crescendo no embalo das mudanças climáticas. Para evitar que a relíquia se perca, uma exposição que reproduz o local foi inaugurada na cidade francesa.
Inundações provocadas por reviravoltas no regime de chuvas representam a maior ameaça para patrimônios de valor inestimável. Nos Estados Unidos, a cidade de Jamestown, em Virgínia, vem sendo castigada pelo excesso de águas — o nível do mar no estuário do Rio James elevou-se 45 centímetros desde 1927. Fundada em 14 de maio de 1607, foi o primeiro assentamento britânico no continente americano e guarda não só a história dos primeiros colonos como também de povos originários que habitaram a região há 12 000 anos. Remanescentes arqueológicos que dão lastro a esse legado ainda não foram investigados e correm o risco de ser destruídos. “Precisamos fazer algo, e deve ser agora”, alertou o arqueólogo americano Michael Levin, diretor de coleções da Fundação Jamestown Rediscovery. Antes que seja tarde.
Publicado em VEJA de 29 de junho de 2022, edição nº 2795