Seca inédita transforma paisagens da Europa e traz alerta para o mundo
As consequências do verão cáustico se espalham por todo o continente
Marcado por paisagens idílicas e pelos panoramas espetaculares das capitais que corta na Europa Central, o Rio Danúbio, segundo maior do continente, passou a exibir cenas inusitadas nas últimas semanas ao longo de seus mais de 2 800 quilômetros de extensão. Com a vazão reduzida pela seca que assola o continente, o curso d’água imortalizado nas valsas do austríaco Johann Strauss recuou de tal forma que em vários trechos expõe de forma inédita seu fundo ressequido. Próximo à cidade de Prahovo, na Sérvia, a falta de água revelou, por exemplo, as carcaças de pelo menos doze navios alemães afundados na II Guerra pelos próprios nazistas para que não caíssem nas mãos do Exército soviético. Com os navios vieram à tona mais de 10 000 peças de artilharia não detonada, que deixaram em pânico as autoridades do vilarejo.
As consequências do verão cáustico e extremamente seco se espalham por todo o continente. Na Espanha, cidades submersas há mais de sessenta anos ressurgiram do fundo de reservatórios. Em Roma, o Rio Tibre, agora esquálido, deixou à mostra fundações de pontes que datam do Império Romano. Na fronteira da Alemanha com a Polônia, o Rio Oder foi palco de uma mortandade de peixes que, segundo especialistas, pode ter entre suas causas a baixa oxigenação provocada pela redução de seu volume. No Rio Reno, uma das vias fluviais do continente, o tráfego de navios foi reduzido em 74%. Na França, a operação das usinas nucleares que geram 70% da energia do país teve de ser reduzida por falta de água para resfriar os reatores. Especialidades regionais como a mostarda de Dijon e o arroz para risoto desapareceram do mercado por terem sua produção comprometida pela seca, que muitos consideram a pior em 500 anos.
Para um observador desavisado poderia ser mais uma conjunção bizarra de fatores em um verão atípico. Entretanto, cientistas do clima veem no fenômeno sinais inequívocos do desequilíbrio climático global. Antes da canícula iniciada em julho, o continente já havia experimentado um inverno e uma primavera particularmente secos. O resultado disso é que 47% do território da União Europeia está sob alerta de seca e outros 17% estão em situação de emergência. Para os cientistas, a coletânea de exemplos registrados recentemente mostra como a mudança dos padrões climáticos é inquestionável e vai muito além do derretimento das calotas polares e geleiras. “Tais fenômenos mostram a fragilidade climática, agora na rotina dos países ricos. Mostram também que os eventos climáticos extremos vieram para ficar”, diz o físico Paulo Artaxo, membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Por mais que seja difícil isolar ondas de calor e identificar quais são consequência do aquecimento global ou não, a maior frequência de eventos extremos ilustra os riscos previstos para as próximas décadas, caso a sociedade não consiga baixar drasticamente as emissões de gases de efeito estufa.“Cada onda de calor que ocorre hoje tem seus efeitos intensificados pela mudança climática induzida pelo homem”, avalia a climatologista Friederike Otto, do laboratório de clima e meio ambiente da Imperial College London. E, quando chove, a precipitação se dá na forma de pancadas violentas e fortes, como visto recentemente em algumas regiões do continente, o que leva a pouca retenção de água no solo já esturricado pelo calor — um cenário muito comum em países pobres, mas novidade nas nações ricas.
Frear a mudança do clima significa eliminar os combustíveis fósseis da matriz energética. Na União Europeia, eles representam 47% da matriz energética. Com a guerra da Ucrânia, há uma tendência de reversão na adoção de alternativas menos agressivas ao ambiente como o gás natural importado da Rússia e a volta de combustíveis poluentes, como o carvão. Caso isso aconteça, episódios inusitados como os registrados neste ano devem se incorporar à rotina no Velho Mundo.
Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804