Polêmica com influenciadora escancara o machismo no mundo dos games
Preconceitos acabam por levar até empresas a atitudes – para dizer o mínimo – nada inteligentes. O que falta para acabar com agressões na jogatina online?
A polêmica foi das mais típicas do mundo de Instagram, YouTube, Twitter, Facebook. Desta vez, foi no Instagram. Gabriela “Gabi” Cattuzzo, de 22 anos, que ganha a vida jogando videogames, postou uma foto dela em cima de um touro mecânico – isso no fim de junho. Não deu outra: pintaram uma penca de comentários machistas na linha “Pode montar em mim à vontade”. Duvido que quem disse isso estava se referindo ao fato de ele próprio ser um jumento. Em resposta, Gabriela reagiu de forma, digamos assim, tempestuosa. Podem até dizer que ela teria sido generalista ao falar “É por isso que homem é lixo”. Não importa. Tratava-se de uma vítima de assédio, nervosa, reagindo a um ataque.
Mesmo assim, uma marca de games, a Razer, fez o que? Cancelou o contrato que tinha com ela, em vez de tentar talvez equilibrar o debate, desde o princípio defendendo o fim de tanto assédio no mundo dos games. E como afirmo que há tanto preconceito no universo de videogames? Pois acompanho isso desde muito pequeno.
A fofoca toda importa pouco. O que mais pesa é a forma como a notícia serve de exemplo de uma faceta nada honrosa, nem saudável, do cenário dos gamers – e, em expansão, como já exibi em diversas reportagens em VEJA e posts neste blog, da indústria da tecnologia. Falemos desta vez dos videogames.
Comecei a jogar ainda na era de Atari. Passei por Snes, a ascensão de computadores como forma de jogar, a primeira versão de Counter-Strike em 1999 (com madrugadas nas hoje nostálgicas lan houses), muitos games multijogadores e etc. O típico jogador, homem, de videogames era um mala sem alça na década de 1990 e início de 2000. Aquele fulano que só encontrava qualquer realização por trás de um teclado ou de um controle.
Convenhamos, essa típica figura também era um machista, homofóbico e também já presenciei muitos casos de racismo. Amigas que tentavam se aventurar por jogos multijogadores eram sempre assediadas – ouvi relatos, inclusive de gamers famosas do YouTube, de homens enviando nudes sem parar, outros que descobriam o endereço delas e diziam que iam “pegá-las” na porta, dentre muitos e muitos outros. A solução da maioria delas: escolher sempre personagens masculinos e se passar por homens nas partidas. Assim me contavam.
Na vida de gamer – que era intensa, à qual me dedicava bastante na adolescência –, também me deparava frequentemente com xingamentos contra homossexuais. E ainda diversos casos de jogadores que anunciavam que não iam escolher um ou outro personagem por ele ser “negrinho”, “negão”, “preto”. O preconceito era quase generalizado, exibido então por nerds cheios de espinha protegidos atrás das telas de seus computadores. Estou generalizando, também? Não. Havia exceções. Procuro acreditar que eu era um nerd, sim, com espinhas. Mas que não me associava às atitudes desses fulanos tão usuais que pintavam em demasia, principalmente nos MMORPG, os RPGs online.
Sem dúvida, quem mais sofria os ataques eram as mulheres. Confesso que quando eu tinha uns 15 anos até tirava vantagens de uns metidos a machinhos, com seus personagens musculosos, em RPGs online. Na contramão de amigas gamers, eu que me passava por mulher no jogo. Por quê? Em meio ao assédio, os caras sempre achavam que iam conquistar a suposta mulher entregando ícones raros do jogo de presente, ajudando a passar de desafios mais avançados etc. De minha parte, costumava adotar a tática para progredir mais rápido no game.
O tempo passou e o mundo dos videogames se tornou mais inclusivo e diverso. Agora, não é coisa só de nerds como eu. Espalhou-se. Quase todo mundo joga, como mostram levantamentos recentes (66% dos brasileiros, segundo a último Pesquisa Game Brasil, deste ano). Grandes gamers profissionais são assumidamente homossexuais. E, olhe só, a mulherada já é maioria nesse universo: algo como 60%, no Brasil.
Por relatos que ouvi, ao longo da vida e de minha profissão, de mulheres que jogam – como em uma conversa que tive com Natalia Kreuser, ou outra com Evelyn Ribeiro –, e de gamers em geral, as manifestações preconceituosas diminuíram ao longo do tempo. Principalmente em lives, quando o jogador mostra sua cara online. Usualmente, hoje em dia aparecem os machistas, os homofóbicos, mas quando estes podem se esconder por trás de perfis anônimos – como foi no caso do Instagram de Gabriela Cattuzzo.
Mesmo assim, os casos são frequentes. Muito frequentes. É corriqueiro que mulheres, famosas ou não nesse meio, reclamem de assédios. Por vezes, deve ficar difícil demais aturar e elas se exaltam em suas reações. Quando deveriam ter apoio nisso, contudo, surgem atitudes como a da marca Razer, que simplesmente decidiu não renovar mais contratos com Gabriela Cattuzzo após o episódio polêmico.
Nos videogames multijogadores, mulheres, gays, quem fosse, deveriam se sentir confortáveis, seguros, sem terem de se preocupar com um “Senta aqui no meu colo” toda vez que fizessem uma manobra nova numa partida de League of Legends. Assim como deveria ser na vida real. No entanto, parece que alguns, como os representantes da tal marca Razer – a mesma que fez uma linha de acessórios rosas achando que assim atrairia o público feminino (como se mulheres não jogassem da mesma forma em computadores de cor preta, azul, amarela, o que for) –, preferem estimular os já velhos gamers assediadores, achando que se deveria ter pausado esse game há uma década.
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É uma infelicidade notar ainda como toda essa cena dos videogames replica a indústria da tecnologia, como um todo. Esta também permeada por machismo, como já tratado em reportagens assinadas por mim nesta VEJA e também em um capítulo de meu último livro, O Clique de 1 Bilhão de Dólares.
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