O padre da minha terra curaria Marilena Chauí
Na visão da filósofa de terreiro, o juiz Sérgio Moro é um agente do imperialismo ianque e das seis maiores multinacionais petrolíferas, as “Seis Irmãs”
Publicado em 21 de julho
Muitos anos antes da estreia do destrambelhado sexto sentido de Marilena Chauí, Taquaritinga se alvoroçava de tempos em tempos com a notícia que corria com rapidez de rastilho pela cidade de 10 mil habitantes: alguém tivera uma visão. Em agosto de 1958, por exemplo, fiquei sabendo num começo da tarde que uma mulher que morava na Vila Sargi acabara de ver Nossa Senhora refletida no alumínio de uma lata de banha vazia esquecida no quintal da casa de chão batido. Cavalgando a Monark com breque no pé que herdara de um dos meus irmãos, subi em cinco minutos a rua de terra que levava ao cenário da aparição, avancei pela floresta de pernas e pés e me infiltrei na terceira fileira, espremido entre uma moça de sombrinha e um homem de bigode e chapéu.
Era tudo verdade, confirmou a troca de impressões entre os dois. O homem se disse impressionado com o intenso azul do olhar da santa. A moça observou que o azul do manto era um pouco mais escuro. Achei que seria falta de educação informar que não estava vendo coisa alguma além do alumínio que o sumiço do rótulo deixava inteiramente exposto ao sol. E já me dispunha a enxergar um terceiro tom de azul quando o padre Lourenço Cavallini chegou pilotando uma perua DKW verde-limão, freou ruidosamente o veículo a um metro do meio-fio, desceu sem tirar a chave da ignição e, com safanões e cotoveladas, abriu uma picada no meio da multidão.
Ao divisar o alvo que perseguia, o impetuoso pastor do rebanho municipal acelerou o ritmo das passadas e, mesmo com os movimentos dificultados pela batina preta, mandou para o espaço com um tremendo bico de esquerda a lata de alumínio com Nossa Senhora e tudo. O que parecia ser o chute derradeiro era um pontapé inicial a que se seguiu o segundo ato do espetáculo da santa cólera. A lata milagreira ainda voava sem destino quando se ouviu a ordem berrada pela temida voz de tenor inconfundível para os ouvintes dos sermões dominicais: “Vão trabalhar, seus vagabundos!”.
Não me senti afrontado: eu tinha 8 anos e nessa idade ninguém trabalhava. Mas a plateia que se ia dispersando vagarosamente foi ficando mais ágil a cada chibatada verbal, e o que começou como retirada sem pressa logo virou correria desembestada. O próximo cretino que tentasse aproveitar-se de figuras sagradas, avisou aos gritos a maior autoridade religiosa do lugar, seria sumariamente excomungado. E ai de quem se achasse no direito de queixar-se ao bispo ou apresentar recursos à Santa Sé, prosseguiu o pregador enfurecido, porque cumpre a todo padre que se preze exterminar a pauladas vigarices urdidas por ateus, maçons, espíritas ou carolas abusados.
Passado o susto, que produziu efeitos paralisantes semanas a fio, os paroquianos dotados daqueles misteriosos poderes voltaram a ter visões, mas os intervalos entre uma e outra foram esticados, e todos se tornaram mais cautelosos. Só ficavam sabendo do acontecido parentes em primeiro grau e amigos de infância, que se comprometiam a manter a história longe dos ouvidos do padre Cavallini.
Depois que deixei a cidade em que nasci, não soube de episódios semelhantes ao que testemunhei naquela tarde. Achei que não haviam sobrevivido à virada do século até que fui confrontado, 12 anos atrás, com o primeiro dos surtos paranormais protagonizados por Marilena Chauí. Esse sexto sentido (de quinta categoria) estreou em 2004, no dia em que a professora de Filosofia da USP saiu de uma audiência com o presidente da República como se estivesse saindo de uma crônica de Nelson Rodrigues: varada de luz feito santo de vitral, recitou a revelação fabulosa: “Quando Lula fala, o mundo se ilumina”.
Como apenas Marilena Chauí viu a garganta do deus do PT gerando mais energia que mil Itaipus, e como a solitária espectadora nunca descreveu detalhadamente a visão que amparou a extraordinária descoberta, não há como comparar o que se passou diante dos olhos da professora com os assombros que se sucedem no mundo real sempre que Lula desanda numa discurseira. Os plurais saem em desabalada carreira, a gramática se refugia na embaixada portuguesa, a ortografia se asila em velhos dicionários, a regência verbal se esconde no sótão da escola abandonada, o raciocínio lógico providencia um copo de estricnina sem gelo, a razão pede a proteção da ONU para livrar-se de outra sessão de tortura.
No segundo surto, como atesta o vídeo abaixo deste parágrafo, Marilena foi mais generosa com os interessados em minúcias. Da mesma forma que Dilma Rousseff vê um cachorro oculto atrás de toda criança, ela vira em cada brasileiro da classe média um traidor da nação, um inimigo da pátria, um torturador de gente pobre ou coisa pior: “Eu odeio a classe média”, contou. “A classe média é o atraso de vida. A classe média é estupidez. É o que tem de reacionário, conservador, ignorante, petulante, arrogante, terrorista. A classe média é uma abominação política, porque ela é fascista, uma abominação ética, porque ela é violenta, e ela é uma abominação cognitiva, porque ela é ignorante”.
O terceiro surto, reproduzido no vídeo que encerra o post, informa que o caso de Marilena já se transferiu do terreno da galhofa para o pátio do manicômio. Entre outros espantos, a mulher que tem visões enxergou na operação que desmontou o maior esquema corrupto de todos os tempos uma trama internacional destinada a roubar riquezas armazenadas nas profundezas do mar do Brasil. “A Lava Jato não tem nada a ver com a moralização da Petrobras”, delirou Marilena há poucos dias. “É pra tirar de nós o pré-sal”.
Na visão da filósofa de terreiro, o juiz Sérgio Moro é um agente do imperialismo ianque e das seis maiores multinacionais petrolíferas, as “Seis Irmãs”. Depois de alguns anos de cursos e treinamentos no FBI (Marilena não esclareceu por que a velha CIA ficou fora dessa), Moro voltou ao Brasil pronto para engaiolar bravos guerreiros do povo brasileiro, atribuir crimes inexistentes a um Lula incorruptível, obrigar empreiteiros, diretores da Petrobras e figurões da política a confessarem delinquências que jamais cometeram, delatar amigos inocentes ou devolver propinas que nunca embolsaram e, com tudo isso e muito mais, precipitar a queda de Dilma Rousseff.
Se tivesse tais visões numa pequena paróquia do século passado, Marilena não escaparia da excomunhão por charlatanice decretada por um padre Cavallini, além de pedagógicas temporadas no hospício mais próximo. Como vive num mundinho infestado de fanáticos, a companheira paranormal tem boas chances de, daqui a pouco, aparecer empoleirada em púlpitos pintados de vermelho, contando as coisas que anda vendo a bandos de devotos lulopetistas. Marilena Chauí tem tudo para brilhar nas missas negras da seita.