Quem, cara-pálida?
À sociedade interessa o que o Congresso pretende fazer em prol da agenda de que o país tanto necessita para avançar
O Poder Legislativo do “nós” preconizado pelo novo presidente da Câmara em seu discurso inaugural deixou de fora o sujeito essencial da sentença: a população. Arthur Lira referia-se aos pares e desenhava em torno de si a moldura de um dirigente democrata, em contraposição ao estilo imperial de Rodrigo Maia. O ato, no entanto, mostrou-se falho na exclusão do elenco principal da peça de autopromoção.
Aceitável que falasse para “dentro” enquanto pedia votos. Desejável, porém, que uma vez eleito olhasse para “fora” em atenção não apenas aos mais de 51 milhões de votos dados aos parlamentares em 2018, mas aos 210 milhões de brasileiros que dependem de medidas do Legislativo para ver respeitados seus direitos. Entre outros o de viver num país mais próspero, justo e cujo Estado seja capaz de fornecer atendimento correto aos cidadãos.
Na ocasião o público mereceu do deputado/presidente uma referência (protocolar, como se viu na aglomeração dos sem-máscara na festa da vitória) à gravidade da pandemia e nada mais que sinalizasse o entendimento sobre a importância do cargo.
Ao contrário, no afã de transparecer humildade na construção de figurino oposto ao do antecessor, posou de gerente-coordenador quando o posto requer capacidade de inspiração e liderança na condução de processos e, se necessário, de atitudes. Como teve Rodrigo Maia em diversas situações que exigiram a defesa da institucionalidade.
“Um Parlamento do ‘nós’ não pode deixar de fora a sociedade, seu elenco principal”
À sociedade não interessa o que os presidentes da Câmara e do Senado podem fazer ou deixar de fazer pelos congressistas ou pelo presidente da República, mas sim o que o Congresso pretende fazer em prol da agenda de que o país tanto necessita para dar seguimento ao desmonte dos entraves iniciado há três décadas e ainda caminhando ao ritmo de poucos avanços e muitos recuos na direção de um Estado mais bem estruturado, vetor essencial ao desenvolvimento econômico e social.
O comando do Parlamento mudou, mas o presidente continua o mesmo. É nessa realidade que os colegiados agora comandados por Rodrigo Pacheco e Arthur Lira terão de fazer suas escolhas. Na eleição da semana passada, a despeito das aparências, a variável principal não foi o apego ou desapego a Jair Bolsonaro em 2022. Valeram mais os compromissos internos. A partir de agora o jogo é outro. Nele, a referência que conta ponto está do lado de fora. A fotografia do triunfo dá lugar ao filme que vai se desenrolar daqui em diante para o agrado ou desagrado da plateia.
Se o Congresso resolver mimetizar a mediocridade do Executivo, estaremos em maus lençóis. Há uma expectativa otimista no mundo do dinheiro de que o comando nas mãos de aliados do presidente traga paz ao ambiente, alivie tensões e abra caminho para as reformas e outras necessidades urgentes. Isso depende de o Parlamento optar pela atividade ou pela passividade.
A segunda hipótese equivale à paralisia. A segunda vai gerar tensões, mas elas muitas vezes são necessárias, seja para fazer as coisas andarem, como ocorreu na disputa de João Doria e Jair Bolsonaro pelas vacinas, seja para impedir o avanço das mãos peludas do autoritarismo e do obscurantismo sobre os marcos civilizatórios da democracia e da modernidade.
Um Congresso mais atuante ou menos ativo — e, por consequência, a atitude dos partidos nele representados — poderá direcionar o rumo da eleição de 2022. São completamente inúteis as especulações sobre a opção desse ou daquele partido por esse ou aquele candidato às presidências da Câmara e do Senado. Se o DEM está dividido ou se Rodrigo Maia vai virar tucano, pouco importa para definir se Bolsonaro terá ou não adversários competitivos.
O posicionamento partidário é importante, mas o fundamental é que cada um deles saiba construir um diálogo franco e consistente com o eleitorado. A história está cheia de exemplos de alianças robustas fracassadas nas urnas. Lastreado numa coligação de nove legendas, Geraldo Alckmin teve 4,76% dos votos na presidencial de 2018 e Bolsonaro foi eleito a bordo de uma insignificante sigla de aluguel.
O que fez a diferença? A captação da demanda da maioria, a oferta da representação da persona adequada ao momento e, sobretudo, a construção gradativa da identificação do público com o discurso. A tarefa dos pretendentes ao Planalto poderia ser resumida à capacidade de responder o que dirão e a quem “nós, caras-pálidas”, afinal, falarão?
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Publicado em VEJA de 10 de fevereiro de 2021, edição nº 2724