Mulher barbada, anão e soprano: o que é real em ‘O Rei do Show’?
O musical com Hugh Jackman, indicado ao Globo de Ouro, escorrega na história ao romantizar a vida do criador do show business
O Rei do Show, de Michael Gracey, conta a história do americano Phineas Taylor Barnum (1810-1891), empresário do ramo artístico que, no século XIX, teria ajudado a criar a fórmula do show business. Vivido pelo astro Hugh Jackman, que desde 2009 se esforçou para viabilizar a cinebiografia, o grande empreendedor era um homem atento ao gosto do público pelo exagero e o bizarro. Na Nova York pré-Guerra Civil Americana, ele uniu um marketing agressivo – e, muitas vezes, antiético – com atrações mais exóticas do que artísticas, atingindo grandes plateias.
A vida real do showman traz vários episódios curiosos, alguns até mais peculiares do que os mostrados no filme, que conquistou três indicações ao Globo de Ouro. Como é de se esperar de um musical – ainda mais um filme de época com canções de estilo contemporâneo -, boa parte do roteiro maquia a realidade. Mesmo assim, não ficou de fora o dom do personagem para aplicar golpes, ainda que, na tela, isso seja justificado como “tudo pela arte”. O que chama mais a atenção é a tentativa de espremer décadas de história em um par de anos, além de terem riscado algumas passagens que poderiam soar obscuras demais para um personagem tão romantizado.
Início do zero
O filme faz questão de apresentar P. T. Barnum, desde a infância, como alguém que saiu da miséria e se fez do nada, abusando da criatividade e de alguma malandragem. Ele era mesmo filho de um humilde alfaiate (o “taylor” de seu sobrenome) no estado de Connecticut. Mas também pegou carona no prestígio local de seu avô materno, um político liberal que agia como legislador e também implementou um esquema de loterias, no qual o neto chegou a trabalhar. Antes de enriquecer no ramo do entretenimento, o futuro rei do show já havia se metido em vários ramos de negócios, como comércio, leilões e imóveis. Em 1829, com apenas 19 anos, abriu um jornal semanal, batendo de frente com a Igreja Católica ao defender em editoriais o fim das leis que, por questões religiosas, proibiam atividades com dinheiro aos domingos. Isso rendeu prestígio entre políticos e empresários. Ele só se mudou para Nova York em 1834 porque o jogo foi proibido em seu estado-natal.
Museu do bizarro
O musical conta que Barnum, depois de trabalhos medíocres, comprou um museu decadente com bonecos de cera e animais empalhados e logo teve a ideia de trazer atrações de carne e osso e oferecer um grande espetáculo bizarro. Na verdade, teve altos e baixos promovendo exibições exóticas antes de abrir o seu museu-teatro, em plena Broadway, em 1842. Em 1835, um ano após se mudar para Nova York, ele lançou sua primeira atração, uma senhora negra, chamada Joice Heth, que levou pelo país em uma turnê de sucesso. Cega e com dificuldade de se locomover, ela era apresentada como uma ex-escrava de 160 anos, que teria sido babá de George Washington, primeiro presidente americano. Mais tarde, o jornalista James Gordon Bennett (no filme, interpretado por Paul Sparks), editor do New York Herald, denunciou a fraude e o próprio Barnum espalhou que a mulher era um boneco mecânico, atraindo ainda mais curiosos. Também cobrou ingresso para a exumação do corpo da senhora, que, na verdade, tinha 80 anos, no máximo. Das atrações que se destacam no filme, tanto a Mulher Barbada como o anão General Tom Thumb existiram, não exatamente como na trupe de Hugh Jackman. Ela, por exemplo, chamava-se Annie Jones (não Lettie Lutz, como a personagem de Keala Settle) e foi exibida primeiro, em 1866, com apenas um ano, como o Infante Esaú. O empresário pagava 150 dólares por semana aos pais dela e a empregou até a vida adulta, no circo, quando se destacou também como cantora. Já o diminuto Charles Sherwood Stratton (Sam Humphrey) foi descoberto em 1842, aos 4 anos, com os 65 centímetros que manteve a vida toda. Treinado para cantar, dançar e imitar famosos da época, ele viajou o mundo e realmente divertiu a Rainha Victoria (como no filme), além de Abraham Lincoln e o rei Eduardo VII.
Turnê de ópera
Conhecida como “a rouxinol sueca”, a soprano Jenny Lind (vivida por sua compatriota Rebecca Ferguson) pode ser considerada a predecessora das estrelas pop, pelo sucesso que fez no século XIX. Bem verdade que boa parte disso se deve a Barnum e seu olhar mercadológico. Em 1849, aos 29 anos, ela anunciou sua aposentadoria após uma carreira de sucesso na Europa. No ano seguinte, porém, aceitou uma proposta irrecusável do rei do show para cruzar o Atlântico: mil reais por noite em um total de 150 apresentações. Como no filme, ele a contratou sem nunca tê-la ouvido, apenas pelo prestígio. Também tratou de promovê-la de tal modo como “a melhor cantora do mundo” que, na chegada da estrela ao porto de Nova York, cerca de 30 mil pessoas se acotovelaram para recebê-la. O filme sugere que a artista tinha uma queda pelo empresário e que, ao ser rejeitada, cancelou seu contrato e deixou-o endividado. Nem perto disso. Depois de rodar o país, além de Cuba e Canadá, eles não concordaram quanto o modo de promover a turnê e ela seguiu por conta própria. Mas depois de 93 apresentações, ambos saíram lucrando. Ele embolsou perto de meio milhão de dólares. Ela, 350.000 dólares, grande parte doada para instituições que investiam em educação musical no seu país. Não há como saber se houve um flerte. Porém, ela encontrou o amor durante a viagem, no pianista e maestro Otto Lind-Goldschmidt, com quem se casou.
Romance nos bastidores
A trama secundária de O Rei do Show gira em torno da história de amor entre o dramaturgo almofadinha Phillip Carlyle (na pele de Zac Efron), pertencente a uma família rica e influente, e a trapezista negra Anne Wheeler (Zendaya). No filme, o interesse do jovem aristocrata na artista o convence a aceitar Barnum como sócio no mundo do entretenimento. Pois toda a questão de luta de classes e relação multirracial, ressaltada no roteiro, é liberdade poética. Tanto Carlyle quanto Anne são ficcionais e o arco deles não se inspira em nenhum fato histórico. Nos bastidores do show, o romance real foi o de Barnum e sua esposa, Charity (vivida por Michelle Williams), dois anos mais velha do que ele. Casaram-se ainda em Connecticut e, ao contrário do que a produção leva a crer, a família dela, endinherada, não viu a união com maus olhos, justamente pelas boas relações políticas do jovem empreendedor. Tiveram quatro filhas (o filme mostra duas de idades próximas). Quando o museu foi inaugurado, em 1942, a mais velha tinha dez anos e a segunda, apenas dois. Na mesma época, tiveram a terceira (que morreria dois anos depois). O casal ficou junto por 44 anos, até a morte de Charity.
Fogo e recomeço
O incêndio mostrado em O Rei do Sow, por mais destruidor que pareça, não chega aos pés da tragédia real. Para começar, foram mais de um fogaréu no caminho de Barnum. Em 1864, em plena Guerra Civil Americana, simpatizantes dos Confederados, os estados sulistas, planejaram destruir alguns edifícios da cidade, incluindo o museu. O estrago do atentado, porém, foi mínimo. Diferente do inferno de 1865, que começou no imóvel vizinho (o filme procura unir os dois contextos em apenas um incidente). Tendo recebido cerca de 38 milhões de espectadores em quase 25 anos de funcionamento, Barnum se envolvia, na época, com política, aproveitando sua popularidade (uma década depois, elegeu-se prefeito de de Bridgeport, em Connecticut). De fato, ele discursava em uma reunião dos republicanos quando foi informado de que o teatro virou cinzas. Vários animais fugiram para a rua. O que o musical não mostra é que eles acabaram abatidos à bala por policiais. Jornais do período noticiaram que um bombeiro chegou a matar um tigre a machadadas antes de combater o fogo. Outros bichos, presos em jaulas, morreram carbonizados. Duas baleias ferveram em seus aquários. Barnum até reergueu seu templo, mas, em 1868, outro incêndio, de origem misteriosa, destruiu tudo de novo. Foi depois deste incidente que Barnum decidiu se dedicar ao mundo do circo, instalando uma grande lona em um terreno no Brooklyn e apresentando como “o maior espetáculo da terra”.