As mulheres reinventam um novo modo de autoestima em tempos de isolamento
Cuidados com o cabelo, unhas etc. deixaram de ser prioridade
“Não existem mulheres feias, apenas mulheres preguiçosas”, disse a polonesa Helena Rubinstein (1872-1965), a célebre empresária do ramo de cosméticos. Revelar a própria beleza, portanto — algo indissociável de toda mulher —, dependeria apenas de não ceder a alguma eventual prostração. Por isso, tome arrumação de cabelo, pintura de unhas, batons, cremes etc. etc. Em tempos de quarentena, no entanto, com parte do planeta submetida ao distanciamento social para frear a propagação do novo coronavírus, todos aqueles cuidados deixaram de ser prioritários no dia a dia das mulheres (sim, fiquemos aqui no terreno feminino, embora o desassossego com a aparência não exclua os homens, em face, por exemplo, das portas cerradas das barbearias).
Assoberbadas de trabalho — profissional e doméstico — dentro de casa, e diante das exigências de confinamento, muitas mulheres buscam às vezes soluções inusitadas para se cuidar, como a que se vê na foto ao lado, feita em Amsterdã, na Holanda. A verdade, contudo, é que elas se sentem impossibilitadas de dar a si mesmas a atenção estética, digamos desse modo, de que gostariam. Não se trata, porém, é claro, de desleixo, de desapego — ou, em uma palavra, de preguiça. E as mulheres, aos poucos, estão começando a entender isso melhor.
Para a psicanalista Joana de Vilhena Novaes, coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, o que está ocorrendo em virtude da pandemia é um processo de inversão de valores. “A máxima do culto ao corpo martela: ‘Para que conviver com defeitos se posso mudá-los?’. Agora, diante do novo coronavírus, que já alcançou o mundo inteiro, essa lógica não faz o menor sentido. O olhar passou a ser direcionado para a sobrevivência e não mais para a aparência”, explica ela.
Antes do afastamento social, toda vez que a publicitária Julia Velo aparecia na agência onde trabalha sem nenhuma pintura no rosto, os colegas, relata ela, chegavam a perguntar se estava doente. “Era impossível sair de casa sem colocar a máscara de mulher bem cuidada. Hoje em dia, quando me olho no espelho, sinto orgulho de tudo o que faço para cuidar de mim e da minha família, mesmo que pareça esteticamente ‘quebrada’”, assegura a jovem, que vive com o namorado em São Paulo. Fios brancos de cabelo, olheiras, espinhas — tudo passou a poder ficar exposto aos olhos de quem se acostumou a esconder as imperfeições, os “defeitos” do corpo. “É preciso se sentir bem consigo mesmo para conseguir cuidar melhor do outro, como o momento exige”, acredita a publicitária.
A opinião é compartilhada com a atriz Lila Guimarães, criadora do blog Cena Crua, no qual publica posts sobre beleza natural. Passando a quarentena em São Bento do Sapucaí (SP) com o marido e a filha de 1 ano e 9 meses, Lila aposta numa renovada da autoestima para atravessar a pandemia. “Quem faz uma máscara de argila no rosto quer ficar mais bonita, é óbvio. Mas, ao mesmo tempo, está olhando para dentro de si. Olho para o espelho e vejo o reflexo de uma circunstância histórica, o terrível surto que estamos vivendo. Então, não vou me exigir ficar incrível. Vou me exigir ficar saudável”, afirma a atriz.
Desde o início do confinamento social, a maquiadora Vanessa Rozan diz que percebeu no instituto Liceu de Maquiagem, fundado por ela na capital paulista, dois movimentos: um, de desapego dos cosméticos, com o devido detox dos produtos; e o outro, que o sucede em alguns casos, marcado pelo resgate da rotina de procurar se embelezar, só que no ambiente familiar, o que pode ajudar até a diminuir a ansiedade. “Muitas mulheres passaram a fazer maquiagem em casa para dizer: ‘Comecei o dia’”, atesta Vanessa. Anos de imagem retocada evidentemente não passam impunes, observa ela. “A hora é de autoaprendizado e reaprendizagem”, sublinha.
A lição, entretanto, não precisa ser pesada. Na quarentena, a publicitária Julia se lembrou de quando, ainda menina, usava os cosméticos da mãe. “A maquiagem voltou para o lugar da brincadeira. Não ‘tenho de’, mas pode ser divertido me ver com um batonzão vermelho.” Alguém discordaria da naturalidade dessa beleza?
Publicado em VEJA de 29 de abril de 2020, edição nº 2684