Jerry Lewis, “colecionador de polêmicas”?
O canhestro clichê que encontrei em um necrológio do comediante americano talvez diga algo sobre a pobreza de ideias em tempos de chatice consensual
“Jerry Lewis colecionou polêmicas.”
Topei com a frase no início de um texto da Folha de S. Paulo sobre o comediante americano morto no dia 20 de agosto. Topei com a frase, e a topada foi violenta. Fiquei paralisado, não pude ler adiante. Então Jerry Lewis, o arrumadinho atrapalhado, era um colecionador – um colecionador de polêmicas! O ator de O Terror das Mulheres, polêmico. Mesmo?
Sim, eu já havia lido a expressão “colecionar polêmicas” antes. Mas só desta vez o ridículo da fórmula feriu meu ouvido e minha sensibilidade. Talvez tenha sido assim porque o clichê aparecia associado ao ator que alegrou minha infância televisiva. Me perdoem a reminiscência nostálgica: eu assistia à Sessão da Tarde na Globo antes que a Sessão da Tarde na Globo fosse ocupada exclusivamente por filmes em que há “uma galera aprontando todas”.
Jerry Lewis também aprontava todas. Jerry Lewis colecionava polêmicas.
E lá vou eu repetir a frase ainda uma vez, para o caso do leitor não ter apreendido suas implicações profundas e suas conotações indevassáveis: Jerry Lewis colecionou polêmicas.
O verbo é a porção absurda do clichê. Colecionar? Os dicionários admitem, por derivação, que uma coleção possa ser meramente um grande número de cacarecos sortidos. Para meu critério, no entanto, uma coleção, para ser coleção e não mero amontoado, deverá conter certa variedade de itens organizados com algum método. Se você é um bibliófilo obcecado por Camões, sua biblioteca deverá ter uma estante ampla e bem catalogada com edições variadas dos Lusíadas. Primeira edição com pelicano para direita e primeira edição com pelicano para a esquerda etc. Como seria, por esses parâmetros, a coleção de polêmicas de Jerry Lewis? Imagino o comediante americano, nos anos finais, revisando, orgulhoso, a sua polemoteca. Todas as noites, depois de se apresentar em um palco de Las Vegas para fãs quase tão idosos quanto ele, Jerry Lewis passaria alguns momentos diante das estantes de polêmicas. Em posição destacada na prateleira central, encontraria o debate com Norman Mailer sobre a Guerra do Vietnã; mais para a esquerda, seu ataque ao feminismo de Gloria Steineim; em um canto discreto, a menos conhecida refutação de um artigo de Edward Said sobre a Palestina. Reluzente entre tantos artigos de décadas atrás, um novo item seria a prova de que a verve do polemista continuava vigorosa em idade provecta: o ataque à política de imigração de Angela Merkel.
As posições de Jerry Lewis, um conservador identificado com o Partido Republicano, seriam provavelmente essas que lhe atribuo na fantasia do parágrafo anterior. Não preciso dizer, no entanto, que ele jamais se envolveu em polêmicas com as figuras citadas. A rigor, Jerry Lewis nunca participou de polêmica alguma, não no sentido nobre da palavra: um debate estruturado de ideias. Então em que consistem as tais “polêmicas” que ele teria “colecionado”? Contam-se nos dedos de uma mão: disse certa vez que mulheres não são boas de comédia; empregou, em uma piada, um termo pejorativo para designar os gays. No início dos anos 70, dirigiu e estrelou um filme potencialmente controverso sobre um palhaço que distraía crianças em um campo de concentração nazista – mas, como o filme nunca foi exibido, a controvérsia não se consumou. E é isso. Jerry Lewis, no fim das contas, foi apenas um homem muito desagradável, como se atesta naquela que deve ter sido sua última entrevista, para a Hollywood Reporter. Talvez seja uma característica própria de tempos hiper-sensíveis, em que se dá crédito a invenções histéricas como”safe space”, “apropriação cultural” e “microagressão”: um pouco mais de aspereza (ou, vá lá, de grosseria) já conta como polêmica.
A polêmica já foi a arte de um Voltaire, de um Nietzsche, de um George Orwell. Grandes polêmicas opunham pensadores de peso – goste-se ou não deles – como Sartre e Camus, Keynes e Hayek. Ultimamente, porém, até a bunda objetificada do cantor trans é polêmica. Certo, as palavras mudam de sentido ao longo de sua história, e não é nem possível nem desejável congelá-las “em estado de dicionário” (a expressão é de Drummond, em Procura da Poesia). Mas palavras também são como moeda corrente: a emissão desenfreada causa a corrosão inflacionário do sentido. Se tudo cabe na ideia de “polêmica”, então polêmica não quer dizer mais nada. Talvez esse processo tenha sido inevitável: um tempo de consensos e de interdições a opiniões tidas como incorretas não pode encontrar bom uso para uma palavra que deriva de pólemos, grego para “guerra” (e a guerra é o pai e o rei de tudo o que existe, ensinava Heráclito).
Ainda existe e, espero, sempre existirá o vivo debate de ideias que agita nosso marasmo cultural e balança certas noções pré-concebidas. Mas precisamos encontrar outra palavra para designar esse objeto. “Polêmica”, em sua versão substantiva ou adjetiva, desgastou-se demais. A banalização jornalística tem sua culpa aqui. Jornalismo não é literatura: é comunicação direta e rápida, e talvez não possa sobreviver sem alguns clichês, sem certas fórmulas imediatamente compreensíveis para o leitor. Mesmo assim, nós, jornalistas, temos responsabilidade com a linguagem que é nosso instrumento de trabalho. Quando admitimos em nossos textos expressões canhestras como “colecionar polêmicas”, contribuímos para a corrupção da linguagem. A previsão catastrófica de Karl Kraus – um dos grandes polemistas do século XX – talvez não seja tão exagerada quanto parece: “O que a sífilis poupou será devastado pela imprensa. Nos amolecimentos cerebrais do futuro, não se poderá mais constatar a causa com segurança”.
***
Listas: ao que parece, elas fazem sucesso nas redes sociais (Karl Kraus, morto em 1936, não conheceu esta nova causa de amolecimentos cerebrais). Pois vou encerrar este post com uma relação de nomes que encontrei no Google ao pesquisar as palavras “coleciona polêmicas”. Alguns deles apareceram em matérias da grande imprensa; outros vêm de blogs e portais em tese menos respeitáveis. A lista é heterogênea, mas é notável que quase não tenham aparecido figuras da esquerda política: ideias progressistas parecem ter se consagrado como um plácido consenso, e não haverá nada de “polêmico” em abraçá-las. Nem tudo é política, claro: a lista inclui um bom número de atores, esportistas, celebridades. A pesquisa não é exaustiva, mas deve ser reveladora, não sei bem do quê.
Todos os listados abaixo “colecionam polêmicas”, seja lá o que isso queira dizer.
Anvisa, agência governamental que controla o que você come
Big Brother Brasil, amolecedor cerebral
Donald Trump, marido de Melania Trump
Fernanda Lima, o-corpo-é-dela-as-regras-são-dela-ninguém-tem-nada-a-ver-com-isso
Geddel Vieira de Lima, desafeto de Renato Russo
Geysi Arruda, ninguém sabe quem é mas está sempre aí
Gilmar Mendes, o homem que recebe flores
Guantanamo, prisão americana em território cubano
Jair Bolsonaro, mito dos pobres
João Doria, colecionador de Romero Britto
Joaquim Barbosa, aposentado
Justin Bieber, moleque canadense
Lewis Hamilton, bólido humano
Lobão, décadence sans élégance
Luana Piovani, não poderia faltar
Luciano Huck, garoto-propaganda
Madonna, respeitável dama do cabaré americano
Malhação (temporada atual), programa a que os velhos assistem para saber o que os jovens pensam
Marcos Feliciano, defensor dos direitos humanos
Marta Suplicy, ex-sexóloga
Melania Trump, mulher de Donald Trump
Mel Gibson, antissemita (mas só quando bebe)
Michael Phelps, peixe
Miley Cyrus, estrela infantil em idade avançada
Neymar, ricaço
Pissula, vereador de Barra Mansa (não sei o suficiente sobre ele para fazer gracinha)
Ricardo Molina, perito em perícias
Sérgio Moro, mocinho do filme Polícia Federal: A Lei é para Todos