‘A Ascensão Skywalker’ explora fronteira entre o familiar e o inédito
Depois de mais de quatro décadas de expansão contínua, o universo de 'Star Wars' chega a um de seus limites, entre o grandioso e o íntimo
Quarenta e dois anos atrás, neste braço afastado de uma galáxia periférica, uma singularidade ocorreu: um filme de gênero então inclassificável — uma fantasia espacial em formato de saga épica —, feito mais com teimosia do que com sensatez, estreou em 32 cinemas americanos no dia 25 de maio daquele ano, 1977. E, em uma espécie de Big Bang cultural, começou a se expandir. Não só em número de salas (em agosto, já eram cerca de 1 000 nos Estados Unidos), mas também, e principalmente, em impacto e em influência; onde antes não existia nada além de uma ideia, repentinamente havia todo um universo em formação. Então intitulado Guerra nas Estrelas, o filme chegou ao Brasil em janeiro de 1978, já superaquecido pela adoração de um público que encontrara nele algo definidor para a sua geração. O que verdadeiramente seria esse “algo” ou essa partícula fundamental, porém, é difícil definir — e Star Wars: Episódio IX — A Ascensão Skywalker (Star Wars: Episode IX — The Rise of Skywalker, Estados Unidos, 2019), o longa-metragem que vem encerrar a saga, não torna a tarefa mais fácil.
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Um filme com a marca Star Wars contém um tipo muito específico de matéria, por assim dizer: tem de tornar real e palpável, na tela do cinema, uma visão em escala colossal do espaço e das suas estruturas, tanto as naturais como as artificiais. Quatro décadas atrás, Star Wars estarreceu os espectadores com os interiores vastíssimos da Estrela da Morte do tirano Darth Vader, onde as legiões de stormtroopers do Império se perfilavam em praças de armas grandes como planícies, e onde pontilhões atravessavam profundidades a perder de vista, tão imensas que o espaço parecia estar também ali dentro. A Estrela da Morte seria pequena perto da Starkiller, a base em que a igualmente fascista e ultramilitarizada Primeira Ordem se reergueu dos escombros do Império, na trilogia inaugurada em 2015: Star Wars segue uma lei dinâmica própria, a qual dita que, a cada filme, tudo tem de ser maior e mais impressionante que aquilo que já foi visto antes.
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Mas encher os olhos da plateia não basta. O que move e anima esse universo é uma energia muito particular, feita de afeto e sentimento e alimentada por uma memória coletiva. Assim, a sequência mais formidável de A Ascensão Skywalker se dá justamente na ruína da Estrela da Morte, abandonada no oceano de um planeta remoto e tornada inacessível por vagalhões do tamanho de montanhas. Esse é o cenário em que o agora Supremo Comandante Kylo Ren (Adam Driver) enfrenta a jedi em treinamento Rey (Daisy Ridley), em quem a Força se manifesta com intensidade sem precedentes, e tenta mais uma vez seduzi-la para o lado sombrio do poder: em Star Wars, as gerações se sucedem reencenando os mesmos dramas. Assim como seu avô Anakin virou Darth Vader e tentou seduzir o próprio filho, Luke Skywalker, para o mal, Kylo se rebelou contra o tio Luke, deu as costas aos pais, Han Solo e a Princesa Leia, e agora tenta perverter Rey — cuja origem é um dos mistérios que vêm à luz neste episódio derradeiro.
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Dito de maneira mais pragmática, esse eterno retorno é o recurso com que Star Wars busca induzir a plateia ao mesmo estado de elação ou prazer que ela experimentou com os filmes de 1977 e 1980, Uma Nova Esperança e O Império Contra-Ataca, e, em medida um pouco menor, com O Retorno de Jedi, de 1983. Com breves mas acachapantes doze minutos em cena no filme inaugural, Darth Vader se estabeleceu como o vilão mais monumental de toda a cultura pop. Vader não mais existe, mas as emoções que ele suscitava são imprescindíveis ao apelo da série — e, assim, A Ascensão Skywalker a toda hora o evoca por meio do seu tema musical de pompa wagneriana (leia o quadro). Da mesma forma, por muito tempo o Han Solo interpretado pelo jovem Harrison Ford só rivalizou em popularidade no cinema com outro herói também vivido por Ford, o arqueólogo Indiana Jones — e, por isso, o piloto da Resistência Poe Dameron (Oscar Isaac) aos poucos foi incorporando o humor e a audácia de Solo, até se tornar uma espécie de reedição do personagem. E, claro, não há prova mais contundente do apego dos fãs que a permanência póstuma da general Leia Organa na série. Morta aos 60 anos, em dezembro de 2016, Carrie Fisher deixara parte de seu material para Os Últimos Jedi filmada, e era esperado que mais cenas fossem completadas por meio de truques digitais. A Lucasfilm, porém, surpreendeu ao estender a participação virtual da atriz — tecnicamente impecável, ainda que com um quê de melancólico — até o desfecho deste último episódio.
Não só personagens, mas também imagens integram esse patrimônio que Star Wars tem de manter ativo. Os créditos iniciais da série são item intocável: no instante em que as luzes se apagavam, em 1977, e os dizeres de abertura começavam a singrar na horizontal rumo ao negrume do desconhecido, a plateia era já fulminada pela vertigem de uma viagem impossível. Por isso são repetidos tal e qual a cada filme. Em O Império Contra-Ataca, causava trepidação a entrada em cena dos Imperial Walkers, os descomunais mastodontes de aço que Luke Skywalker enfrentava nas paisagens geladas do planeta Hoth; na imaginação da plateia, talvez não haja demonstração mais irresistível de poderio do que eles — e, dois anos atrás, Os Últimos Jedi os trouxe de volta em peso (muito literalmente) para outra batalha climática num planeta branco. Os exemplos são mais numerosos do que seria possível mencionar; mal comparando, é como se a equipe e o público de Star Wars estivessem sempre tentando capturar juntos aquela excitação original, à maneira de uma pessoa que busca reproduzir, com novas doses, a primeira viagem instigada por uma substância alucinógena.
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O sinal de quanto essa memória compartilhada desempenha um papel fundamental em Star Wars está na indiferença da China à marca: habitualmente ávidos por superproduções ocidentais, os chineses não dão muita bola para as aventuras de Rey, Poe e Finn (John Boyega). O Despertar da Força fez 124 milhões de dólares no país e ficou em 11º lugar na bilheteria de 2015. Em contraste, o campeão daquele ano, Velozes & Furiosos 7, arrecadou 390 milhões. Desde então, os filmes da série só fazem minguar em território chinês. A explicação é simples: nos anos 70 e 80, produções americanas eram proibidas pelo regime comunista, e os chineses ficaram de fora da febre mundial por Star Wars. Só antes da estreia da nova trilogia afinal puderam ver os filmes originais em uma tela de cinema — tarde demais para formar com eles um vínculo emotivo. Entretanto, essa mesma plateia que se apaixonou por Star Wars em 1977 — e as gerações seguintes, que aprenderam a amar a série ainda no colo dos pais — pôs por terra a crença de que basta uma produção ostentar a marca para ter seu sucesso garantido. No ano passado, a Lucasfilm ficou tão desconcertada com o fiasco (por seus parâmetros, evidentemente) de Han Solo — Uma História Star Wars que cancelou os planos de pelo menos mais dois filmes, um sobre a juventude do cavaleiro jedi Obi-Wan Kenobi e o outro sobre o caçador de recompensas Boba Fett. Nem a problemática trilogia dos anos 2000, que George Lucas — um grande produtor, mas um cineasta limitado — teimou em dirigir, enfrentou rejeição comparável. (Perde-se em um lugar, ganha-se em outro: já é um sucesso inqualificável o Baby Yoda da série The Mandalorian, carro-chefe da recém-lançada plataforma de streaming Disney+.)
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Eis então a linha estreita sobre a qual o diretor J.J. Abrams tem de se equilibrar em A Ascensão Skywalker: aquela na qual o inédito e o familiar, e o grandioso e o íntimo, se justapõem com tanta precisão que possam multiplicar o efeito um do outro. Abrams reacendeu o entusiasmo por Star Wars com O Despertar da Força, mas tem agora de dispersar a ambivalência criada pelo irregular Os Últimos Jedi, do diretor Rian Johnson, ao mesmo tempo que cumpre a missão delicada de dar um desfecho satisfatório a cada um dos personagens, e à saga como um todo. E, claro, não há como ignorar a engrenagem bilionária de negócios que os filmes fazem girar (confira os quadros ao longo da reportagem).
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O êxito de Abrams é parcial. Mais por razões sentimentais que por necessidade narrativa, certos personagens rondam este capítulo final como fantasmas — não é maneira de dizer — que não conseguem se desprender da vida passada, e até os ewoks, os irritantes ursinhos de pelúcia de O Retorno de Jedi, o diretor arruma jeito de homenagear (Jar Jar Binks, pelo menos, ficou de fora da festa). Revisitam-se cenários há muito deixados para trás, como Tatooine, o planeta da infância de Luke Skywalker, e repisam-se lições de honra e coragem já reforçadas à exaustão nos oito episódios anteriores. Mas, sempre que o filme retoma os personagens e os fundamentos visuais estabelecidos pelo próprio Abrams, ele ganha tração e se torna palpitante, e recupera aquela excitação intangível da descoberta. Nesses momentos, é possível acreditar que o universo de Star Wars, de fato, vai se expandir para sempre, até o limite da imaginação.
Publicado em VEJA de 25 de dezembro de 2019, edição nº 2666
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