‘Dopesick’ revela ganância corporativa por trás de epidemia de opióides
Baseada em um livro-reportagem e com elenco excelente, a minissérie acaba de estrear no Star+
Para médicos como Samuel Finnix (Michael Keaton), a medicação vendida como milagrosa parecia mesmo sê-lo. Com consultório numa cidadezinha de mineração de carvão do Kentucky, uma das regiões mais pobres dos Estados Unidos, Finnix lidava como podia com uma clientela sujeita a acidentes de trabalho que não raro deixavam sequelas dolorosas ou incapacitantes. Resistente a prescrever narcóticos fora do ambiente hospitalar, Finnix foi persuadido pelas alegações da FDA, a agência americana de saúde, e de vários estudos científicos supostamente de boa proveniência de que, embora o recém-lançado OxyContin fosse um opioide — uma das classes de substâncias mais viciantes que existem —, menos de 1% dos usuários se tornava dependente dela. Dois comprimidos de 10 miligramas ao dia e pronto, pacientes como a jovem Betsy Mallum (Kaitlyn Dever), com uma lesão grave nas costas causada por um acidente na mina, se viam livres de toda a dor.
Mas os 10 miligramas logo viravam 20, e depois 40, e então 80, ou muito mais. Quando as prescrições não mais bastavam para satisfazer a dependência — não que a maior parte dos médicos e hospitais relutasse em emiti-las —, o paciente caía na mão de traficantes de pílulas, e delas ia para o potentíssimo Fentanyl ou para a heroína injetável. Adaptada de um livro-reportagem, Dopesick (Estados Unidos, 2021), a minissérie em oito episódios que acaba de estrear no Star+, mostra como, em poucos anos, situações como a de Betsy já estavam multiplicadas aos milhões: pacientes em busca de alívio para dores crônicas ou mesmo triviais dores de cabeça iam virando adictos de uma droga devastadora. A epidemia americana dos opioides já responde por meio milhão de mortes (e contando) em pouco mais de duas décadas e um número colossal de pessoas arrasadas por uma dependência altamente resistente ao tratamento. Outros efeitos colaterais: uma onda sem precedente de crimes, violência doméstica, prostituição, síndromes neonatais e mazelas socioeconômicas de toda espécie.
Não é casual que se tenha dito aqui que a medicação foi “vendida”. Dopesick abarca múltiplos pontos de vista — de pacientes, familiares, médicos, agentes federais, promotores —, mas no seu centro está a maneira agressiva e fraudulenta como a fabricante do OxyContin, a Purdue Pharma, pôs sua droga no mercado. A Purdue mirou pesado em médicos e equipes hospitalares e escolheu lançar a novidade em áreas de mineração, siderurgia, extração de madeira e afins — locais em que quase todo o emprego vem de trabalho físico intenso e perigoso, e onde boa parte da população vive em fragilidade financeira, com acesso precário à cobertura de saúde. Em um processo mal explicado, também, a empresa conseguiu que a FDA atestasse na bula do OxyContin que ele era menos viciante e por isso podia ser usado sem contraindicação no tratamento de dores moderadas.
Opiáceos (como o ópio, a morfina e a heroína) são usados há séculos e sua versão sintética, os opioides, há décadas. Mas, até o OxyContin, opioides só eram indicados para dores intensas, sob controle severo. Com as farmácias inundadas de comprimidos, o uso recreativo (que, aliás, é tudo menos isso) de opioides explodiu junto com o uso por prescrição. Como qualquer modalidade de uso continuado da droga é potencialmente uma espiral, à medida que o organismo desenvolve tolerância a ela e o cérebro adapta seu funcionamento à sua presença, as consequências são incalculáveis. Há três meses, a Justiça americana pôs nelas uma espécie de preço: a Purdue foi dissolvida em um acordo de falência que prevê a destinação de 4,5 bilhões de dólares para ajudar a sanar os efeitos da epidemia. O arranjo, porém, praticamente isenta de culpabilidade a família dona da Purdue — inclusive Richard Sackler (na série, Michael Stuhlbarg), que capitaneou o desenvolvimento da droga e sua promoção. Para as vítimas da epidemia, é pouco.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764
*A Editora Abril tem uma parceria com a Amazon, em que recebe uma porcentagem das vendas feitas por meio de seus sites. Isso não altera, de forma alguma, a avaliação realizada pela VEJA sobre os produtos ou serviços em questão, os quais os preços e estoque referem-se ao momento da publicação deste conteúdo.