Não, Drive My Car, dos Beatles, não está na trilha sonora de Em Ritmo de Fuga (quase um espanto, considerando que a trilha tem mais de 40 faixas diferentes), mas ela exprime precisamente os meus sentimentos a respeito de Baby (Ansel Elgort), o maravilhoso protagonista do filme: onde ele for, eu vou junto. Mas no banco do passageiro, porque ao volante não há ninguém que se compare a Baby, o melhor motorista de fuga à disposição dos criminosos de Atlanta – embora ele próprio não seja criminoso, e sim apenas um rapaz que desgraçadamente entrou em dívida com Doc (Kevin Spacey), agenciador de roubos variados. Enquanto Baby não quitar a dívida, Doc não vai deixar barato. Aliás, talvez nem depois.
Dirigido pelo inglês Edgar Wright, do indispensável e imprescindível Todo Mundo Quase Morto – a melhor paródia/carta de amor aos filmes de zumbi já feita –, Em Ritmo de Fuga consegue ser ainda mais indispensável e imprescindível: um filme que é uma bolha de sabão, com a história mais original, a direção mais inspirada, a seleção de músicas mais bacana e o protagonista mais irresistível da temporada. E o elenco mais sensacional também: Ansel Elgort, que me deixou no chão em A Culpa É das Estrelas, repete o feito aqui, em companhia de um punhado de ótimos atores cujo prazer em estar no filme é visível – além de Kevin Spacey, participam Jon Hamm, Jamie Foxx, Jon Bernthal, Lily James e outros que você nem conhece, mas que dão um show também (o pai surdo de Baby, a caixa da agência do correio, a senhora negra de quem Baby rouba um carro). Quer passar duas horas de felicidade perfeita? Pegue carona com Baby.
Leia a seguir a resenha completa:
Ás do Volante
Imaginação, perícia e um protagonista irresistível: Em Ritmo de Fuga, estrelado por Ansel Elgort e dirigido por Edgar Wright, é a melhor surpresa da temporada
O barista que tira seu café, os criminosos com que ele trabalha, a nova garçonete da lanchonete que ele frequenta: todas as pessoas a quem Baby se apresenta param, encafifam e então pedem que ele soletre seu nome – b-a-b-y, que calha de ser uma das palavras mais banais da língua inglesa. Baby não se abala; a cada solicitação, soletra com o mesmo compromisso, e como se não fosse óbvio. Interpretado por Ansel Elgort (de A Culpa É das Estrelas) com uma certa cara de bebê mesmo, e com oceanos de charme – equiparados à direção infinitamente espirituosa de Edgar Wright –, Baby é um personagem que pode estar no caminho trilhado pelo Ferris Bueller de Curtindo a Vida Adoidado, de 1986: o de se tornar emblema de um estado espírito ideal da juventude, além de sinônimo de um temperamento adorável, aberto para a vida, que seria ideal em qualquer idade.
O protagonista de Em Ritmo de Fuga mal saiu da adolescência e já é um hábil motorista de carros de fuga, como demonstra a prodigiosa sequência sem cortes da abertura, tão cheia de manobras impossíveis (feitas na raça pelos dublês) que se reage a ela com gargalhadas de exultação: Baby faz miséria ao volante sem nem tirar os fones nos quais ouve Bellbottoms, do The Jon Spencer Blues Explosion. A música, na verdade, é indispensável; ele cronometra cada nova fuga com uma faixa específica para ela. Baby fala pouco, ouve música o tempo todo – literalmente o tempo todo, o que explica as 43 canções listadas nos créditos – e fica na sua quanto pode. Mas não é fácil, considerando o tipo de companhia com que ele anda.
Em dívida com Doc, um chefão do crime interpretado com gosto por Kevin Spacey, o garoto não tem alternativa senão aceitar as incumbências perpetradas por um revezamento aterrorizante de tipos escusos – entre os quais, o brutamontes vivido por Jon Bernthal, o psicopata de Jamie Foxx e o finório encarnado com alegria por Jon Hamm, sempre agarrado a uma morena fatal (Eiza González) que encoraja seus maus instintos. Doc é a razão das desventuras de Baby, mas é também o único anteparo entre ele e a doidice desses comparsas em assaltos a bancos, edifícios e até postos de correio. O pai adotivo de Baby (CJ Jones), um velhinho magro e surdo, é um dos seus calcanhares de aquiles, claro. E o outro acaba de surgir na sua vida – a tal garçonete nova, uma doçura a quem Lily James, de Downton Abbey, confere delicadezas inesperadas.
O inglês Edgar Wright já tem no currículo o cult de primeira grandeza Todo Mundo Quase Morto, de 2004, uma paródia tão hilariante quanto amorosa dos filmes de zumbi. Tem outros bons filmes que combinam sátira e carinho, sempre com o amigo Simon Pegg no papel principal – a exemplo de Chumbo Grosso, paródia de histórias de duplas de policiais. Em Ritmo de Fuga, porém, é sua primeira parceria com Ansel Elgort (espera-se que não a última), e o artigo mais genuíno: é feito com tanta imaginação e paixão, e tanto comprometimento pessoal de todos os envolvidos, que ultrapassa com folga os limites dos filmes que quer homenagear (como Acossado, de 1960, de Jean-Luc Godard) ou satirizar (como Drive, de 2011, com Ryan Gosling).
Wright, além disso, é um diretor que vem refinando seu domínio técnico a cada novo trabalho: perseguições de carro têm por definição que excitar e causar incredulidade, e ele cumpre a missão com honras – chegando à minúcia de editar cada cena de fuga ou tiroteio precisamente contra as batidas da música de fundo. Mais que tudo, é a própria autoconfiança narrativa de Wright que vem crescendo. Em Ritmo de Fuga é como um torniquete que de início nem se percebe estar lá, tão folgado ele está. Mas Wright o aperta um pouco mais a cada cena, até que Baby não mais possa se esquivar da violência da situação. É uma mudança de marcha delicada. A não ser que se seja um ás da direção.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista VEJA no dia 26/07/2017 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2017 |
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EM RITMO DE FUGA (Baby Driver) Estados Unidos, 2017 Direção: Edgar Wright Com Ansel Elgort, Kevin Spacey, Jon Hamm, Lily James, Jamie Foxx, Jon Bernthal, CJ Jones, Eiza González, Flea, Lanny Joon, Allison King, Andrea Frye Distribuição: Sony Pictures |