La La Land – Cantando Estações
Musical pode ser tortura. Mas este é encanto, enlevo e melancolia
Em geral, detesto musicais; acho que eles são uma forma socialmente aceita de tortura (e Moulin Rouge é o meu Abu Ghraib). Um número ou outro, ainda vai. Debbie Reynolds, Donald O’Connor e Gene Kelly arrasando em Good Morning, em Cantando na Chuva? Uma graça. Fred Astaire dançando com Ginger Rogers ou com Rita Hayworth? Sempre lindo. A abertura de Amor, Sublime Amor? Moderna e vigorosa. Mas ponha em torno dessas cenas um filme estufado de coreografia e cantoria e, em 99 de cada 100 casos, eu preferiria ter passado aquelas duas horas quebrando paralelepípedo embaixo do sol. Mas, às vezes (bem poucas), um musical me pega inteiro. E La La Land, que neste momento é o favorito inconteste ao Oscar, me pegou de jeito.
Não é que eu tenha saído do cinema arrebatada, como tanta gente. Mas saí encantada, enlevada, melancólica. Saí, também, irmanada com o diretor Damien Chazelle nos sentimentos sobre Los Angeles – uma cidade que promete tanto, mas que parte corações e é tão difícil domar. Não é como Nova York, onde as pessoas partem para a conquista. Los Angeles é arisca, fugidia. Tem tanto sol, festa e promessa de sucesso que demora ao sonhador perceber que está apenas rodeado dessas coisas, sem fazer parte delas. E demora mais ainda até ele se dar conta de que as suas chances de fazer parte disso são infinitesimais; em geral, a constatação do fracasso só vem tarde demais. Los Angeles acrescenta ofensa à injúria: não só a pessoa naufraga, como se sente humilhada por ter se iludida. E, quando acerta, o acerto vem com uma carga esmagadora de expectativa, competitividade e perda pessoal. Para pertencer a esse mundo, é preciso abrir mão de todos os outros mundos a que se pertenceu antes.
Esse é o tema de La La Land: dar certo, nesse meio, custa caro. Conseguir uma coisa quase sempre implica desistir de outra, igualmente importante. Mas é na maneira como Damien Chazelle filma que ele crava o alvo. Em 2013, aos 28 anos, Chazelle emplacou uma estreia de altíssima voltagem com Whiplash, em que a medida do sucesso era interna – a perfeição que o baterista de jazz interpretado por Miles Teller almeja, e que o professor vivido por J.K. Simmons exige. Whiplash deu a Chazelle uma medida de sucesso interna e também externa: a forma como ele casa as cadências da música à estrutura da trama é irrepreensível, e a crítica foi quase unânime nos elogios – e também a bilheteria foi notável para uma produção independente feita por minúsculos 3 milhões de dólares. Whiplash abriu as portas para Chazelle, e finalmente ele conseguiu que ouvissem sua ideia para La La Land. No qual, novamente, a música (sobretudo o jazz) dita o compasso da história.
La La Land é uma criatura singular. Na primeira camada, é um musical. Os encantadores Emma Stone e Ryan Gosling cantam (ela, com um fiozinho simpático de voz) e dançam (ambos muito bem). Na segunda camada, é uma homenagem a todas as vertentes do musical: os pas-de-deux de Fred Astaire com suas estrelas, as danças viris de Gene Kelly, as coreografias caleidoscópicas de Busby Berkeley, a vibração e o colorido forte dos musicais urbanos da fase tardia do gênero. Abaixo dessa camada, desenha-se outra ainda, mais delicada e subjetiva. Sim, às vezes os motoristas presos no engarrafamento saem dando piruetas no capô dos carros e cantando a plenos pulmões, ou Emma e Ryan, no meio de uma briguinha, começam um dueto, com o pôr-do-sol ao fundo. Mas há algo indefinível que torna essas erupções de canto e dança diferentes do habitual. É como se os personagens estivessem dançando e cantando dentro de si – como se estivessem, no seu íntimo, imaginando exprimir assim os seus sentimentos.
Emma Stone faz Mia, uma aspirante a atriz que trabalha em um café dentro do estúdio da Warner. Vive cercada pelo sonho do cinema, mas não consegue um papel sequer. Ryan Gosling faz Sebastian, um pianista de jazz cabeça-dura que perde emprego atrás de emprego, porque insiste em tocar free jazz nos restaurantes em vez de Jingle Bells. Sebastian sonha ressuscitar um clube de jazz tradicional que virou bar de samba e tapas (!!!), mas não tem um tostão. Mia e Sebastian se cruzam pela primeira vez no engarrafamento que abre o filme (eles se xingam). Esbarram-se de novo no momento em que ele está perdendo mais um emprego, e ele é grosseiro com ela. Encontram-se mais uma vez numa festa em que, humilhação das humilhações, ele está tocando chatinhola numa banda cover dos anos 80. Eles saem da festa juntos; trocam farpas; mas já está na cara que a paixão é fulminante. O romance vai se desdobrar com suavidade, enquanto eles caminham pelo feio e o bonito de Los Angeles (há bastante dos dois).
Chazelle filmou quase só em locações reais, com luz natural. É bárbaro como ele e o diretor de fotografia, o sueco Linus Sandgren, captam o espírito de Los Angeles: o verdadeiro parece falso, e o falso parece mais real que o verdadeiro. Em um píer, com o rosa do céu e o azul do mar se confundindo, Sebastian cantarola para si mesmo City of Stars – uma das canções que vão alinhavando o filme, e que fica mais bonita quanto mais é ouvida assim, em contexto. Mas é claro que escolhas terão de ser feitas, e que acolher alguns êxitos implica enfrentar algumas perdas. E isso, talvez, seja o mais lindo de La La Land: a maneira como Mia e Sebastian, nesse musical que rola na imaginação deles, encontram o final perfeito que a vida nunca pode oferecer.
Trailer
LA LA LAND – CANTANDO ESTAÇÕES (La La Land) Estados Unidos, 2016 Direção: Damien Chazelle Com Ryan Gosling, Emma Stone, John Legend, Rosemarie DeWitt, J.K. Simmons, Finn Wittrock Distribuição: Paris Filmes |