Lançamento de ‘Mulher-Maravilha 1984’ expõe Hollywood na berlinda
Há seis meses à espera da estreia, filme afinal chega aos cinemas — e, nos Estados Unidos, também ao streaming, deflagrando uma nova política e pânico
Em Mulher-Maravilha 1984 (Wonder Woman 1984, Estados Unidos/Inglaterra/Espanha, 2020), já em cartaz no país, Diana Prince (Gal Gadot) se vê às voltas com uma relíquia de poder cataclísmico: um cristal de rocha aparentemente sem valor, mas que tem o dom de conceder desejos. A própria Diana cede à sedução da relíquia ao imaginar de volta à sua vida alguém cuja falta lhe dói há quase setenta anos. Já as aspirações do empresário/vigarista falido Max Lord (Pedro Pascal) e da solitária e ignorada Barbara Minerva (Kristen Wiig) são bem mais grandiosas. Por causa deles, mais e mais pessoas formulam seus pedidos em todo o mundo, e mais os efeitos deles se multiplicam e conflituam entre si, criando uma voragem de destruição. O antídoto para essa epidemia seria simples, não fosse a natureza humana o que é; bastaria renunciar ao que se obteve para, a cada desejo desfeito, restituir algo mais do mundo à normalidade.
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Se o ano de 1984 reimaginado pela diretora Patty Jenkins e os roteiristas acena assim com uma esperança, o ano de 2020 termina sem que seus danos à indústria de cinema deem sinal de reversão. Ao contrário, ele lega um saldo perturbador para 2021: produzido ao custo de 200 milhões de dólares e muitas vezes adiado, Mulher-Maravilha 1984 vai chegar em 25 de dezembro aos cinemas americanos — mas não só a eles. Nos Estados Unidos, vai estrear simultaneamente na plataforma de streaming da Warner, a HBO Max. E assim será também com todos os títulos que o estúdio tem programados para o ano que vem, incluindo outras superproduções como Duna e Matrix 4. Não se sabe ainda que política a Warner seguirá no mercado internacional no segundo semestre, quando a HBO Max deverá estar disponível também na Europa e na América Latina. Na verdade, não se sabe de nada: de cadeias de exibição a diretores e astros, a comunidade cinematográfica repudiou a novidade com uma dureza que sinaliza não só consternação, como também pânico de que essa saída se generalize.
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É de se imaginar quanto das sequências mais ambiciosas (e às vezes kitsch) de Mulher-Maravilha 1984 — como o torneio na Ilha de Themyscira que abre o filme, ou o grande enfrentamento entre Diana e os vilões — a tela de um tablet será capaz de abarcar, ou mesmo em que medida Patty Jenkins e Gal Gadot conseguirão comunicar, nessas condições, a afeição que têm pela personagem: ainda que essa continuação tenha uma coesão e um empuxo narrativo inferiores ao do filme original, de 2017, ela é prazerosa o suficiente para clamar pela tela grande. Jenkins e Gadot foram diplomáticas; pediram que os espectadores preferissem as salas de cinema onde isso fosse seguro, mas disseram-se satisfeitas por haver uma alternativa nos outros casos.
Nos bastidores, porém, a briga pega fogo. A guinada da Warner foi tão repentina que nenhuma das equipes dos filmes foi consultada de antemão. As cadeias de cinemas, já próximas da insolvência, manifestaram desespero. Entre as repercussões, há a questão sensível da remuneração, que em muitos casos deverá parar nos tribunais: em geral, diretores e astros recebem uma quantia pequena (maneira de dizer) na forma de cachê, e o restante em pontos porcentuais sobre os ganhos do filme. Como calcular o que seria um equivalente justo, porém, com a erosão da bilheteria pelo coronavírus (neste momento, a Europa novamente está fechada, e só 35% das salas americanas estão em operação — com baixíssima frequência)?
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Entre todos os estúdios, a Warner foi o que mais se empenhou em preservar alguma normalidade, organizando uma estratégia complicada para lançar em datas diferentes em cada território o Tenet, de Christopher Nolan — que agora tem sido seu crítico mais vocal e agressivo. Mas o estúdio diz que todos os epidemiologistas que consultou concordam que, mesmo com a vacinação, 2021 promete muito pouco em termos de normalidade. Diante dos resultados satisfatórios colhidos pela Universal, que estreitou para dezessete dias o intervalo entre o lançamento em cinema e a chegada ao streaming, e os números exuberantes da plataforma Disney+, que aplicou a Mulan a mesma estratégia agora adotada no atacado pela Warner, o conglomerado aposta na conversão de toda a sua agenda de 2021 — um investimento de 2 bilhões de dólares — em combustível para alavancar a até aqui claudicante HBO Max. O temor que isso desperta é que, no mundo real, onde não existem Diana Prince nem relíquias mágicas, o que foi feito não possa ser jamais desfeito.
Publicado em VEJA de 23 de dezembro de 2020, edição nº 2718
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