Quase sempre, quando a gente aplica o adjetivo “sentimental” a um filme, é na forma de objeção, para sugerir que ele é piegas ou manipulativo. Às vezes, porém, “sentimental” significa só isso mesmo, algo que apela aos sentimentos. A história de Saroo Brierley cabe nessa descrição: o indiano Saroo tinha 5 anos de idade quando, em 1986, se perdeu de seu irmão Guddu numa estação de trem e foi parar 1.600 quilômetros mais adiante, na caótica Calcutá, sem ter nenhuma ideia de como reencontrar o caminho para casa. Saroo passou por perigos e privações terríveis. Em um lance de sorte (propiciado em boa parte pela sua inteligência e esperteza), escapou do destino de criança de rua: foi adotado por um casal australiano e, durante a vida com os novos pais, na Tasmânia, aos poucos foi se esquecendo de sua vida anterior. Mais de vinte anos depois, porém, o mistério de quem ele seria, de onde teria vindo e do que teria acontecido com sua mãe e seu irmão voltou com força e virou uma obsessão – a qual ele demoraria outros cinco ou seis anos ainda para solucionar.
Lion (que concorre ao Oscar de melhor filme, roteiro adaptado, fotografia, trilha sonora e ator e atriz coadjuvantes, com Dev Patel e Nicole Kidman) falou a mim por vários motivos. Por exemplo, pela vulnerabilidade da infância, mas também pela fantasia e pelo senso de aventura que se tem nessa fase da vida. Pelas questões complicadas de identidade cultural das pessoas que vieram de um mundo, se estabeleceram em outro e então ficaram sem uma ponte entre eles. Pela inacreditável resiliência e persistência de que às vezes até indivíduos muito frágeis são capazes. E pela interpretação irresistível dos dois Saroos – Sunny Pawar na infância, e Dev Patel na juventude.
É verdade que a segunda metade do filme não é nem de longe tão bem resolvida quanto a primeira? Sem dúvida. A propaganda do Google Earth (o lançamento da ferramenta, em 2005, ajudou Saroo a localizar seu vilarejo natal) é excessiva e prejudicial ao filme? É, sim. Mas são problemas menores em um filme feito com coração grande. E, só para constar, acho pura afetação as queixas de que Lion estereotipa a Índia ao mostrar a pobreza, sujeira, indiferença e desorganização (queixas que também foram dirigidas a Quem Quer Ser um Milionário?, o filme em que Dev Patel se lançou). É mais ou menos como argumentar que um filme ambientado nas várias cidades brasileiras tomadas pelo lixo por falta de coleta regular, ou um filme que tratasse da adolescente paraense que passou um mês sendo estuprada por homens adultos em uma cela de prisão, seriam estereótipos do Brasil: não há como tirar uma média sem contabilizar os extremos.
Leia, a seguir, a resenha completa de Lion – Uma Jornada para Casa:
BRAVURA LEONINA
O tocante Lion recria o misto de terror e fascínio de uma infância marcada por uma reviravolta trágica, e também a turbulência de, na vida adulta, tentar recompor o passado
Existir, para Saroo (o vivíssimo Sunny Pawar), é embriagante:. Cercado de borboletas no mato, andando com o irmão mais velho Guddu (Abhishek Bharate) pelas trilhas, embalado pela mãe em casa ou atônito diante de tanta cor e cheiro no mercado da rua, Saroo, de 5 anos, experimenta o mundo como um turbilhão de sensações. E um dos feitos mais admiráveis de Lion – Uma Jornada para Casa, que tem seis indicações ao Oscar, é transportar esse deslumbramento para dentro do périplo assustador que definiu a vida do menino, e também a do homem que ele viria a ser. Saroo, que hoje tem 36 anos e mora na Tasmânia, nasceu num vilarejo rural na região de Khandwa, no oeste da Índia. Sua mãe carregava pedras; ele e Guddu, de seus 13 anos, catavam carvão ou latas. Em um certo dia de 1986, Saroo implora a Guddu que o leve com ele para trabalhar algumas estações de trem mais adiante (ele levanta uma bicicleta, quase desabando sob o peso dela, para provar que já é forte; Guddu não resiste a tanta graça, e consente). Lá, porém, Guddu vai cuidar da vida, e Saroo fica dormindo no banco da estação. Acorda e vai xeretar um trem parado nos trilhos; cai no sono lá dentro. Quando desperta, o trem segue a toda velocidade: é uma composição de passageiros desativada, e só vai parar em Calcutá, a 1.600 quilômetros dali.
São quase dois dias de desespero, aos quais a direção de Garth Davis e a montagem de Alexandre de Franceschi (colaboradores na minissérie Top of the Lake) conferem uma intensidade de conto de fadas – que se aprofunda nos dois sentidos, o do terror e o do fascínio, quando o trem despeja Saroo na cacofonia de Calcutá. Saroo mal sabe o seu nome e o do irmão; sua mãe é só isso, “mãe”. Não sabe de onde veio, e não entende o bengali local; seu idioma é o hindi. Suas chances são ínfimas: a cidade está cheia de crianças como ele, dormindo no chão e fugindo de traficantes de mão de obra escrava ou de agenciadores de exploração sexual. Em uma cena linda, Saroo imita os gestos de um rapaz que toma sopa num restaurante e que, tocado, tenta ajudá-lo. O melhor que ele consegue é que Saroo vá para um orfanato infernal. O Charles Dickens de Oliver Twist ou o Steven Spielberg de Império do Sol não teriam reparo a essa primeira hora de Lion: é magistral a maneira como ela registra a aventura – e a desventura – da infância, e é irresistível a interpretação de Sunny (que, apropriadamente, significa “ensolarado” em inglês).
Saroo, em cujas memórias o filme se baseia, teve mais sorte que a maioria: foi adotado pelo casal australiano Sue e John Brierly (Nicole Kidman e David Wenham), e começou uma nova vida – marcada, no princípio, por uma saudade oceânica, e, depois, pela assimilação: lá pelos 25 anos, Saroo (Dev Patel) nem lembra mais que um dia foi indiano. É o filho promissor amado pelos pais, que estuda, pratica esportes, namora uma colega (Rooney Mara) e não conhece necessidade. Repentinamente, contudo, o passado o engole, reacendido por um sabor antigo, e a aflição sublimada por duas décadas retorna com a potência original: Saroo se dá conta de que a mãe e Guddu devem ter estado à sua procura em cada um dos mais de 7.000 dias que os separam, e encontrá-los (e encontrar a si mesmo) vira uma obsessão que o consome.
Nesse segundo ato, o roteiro se mostra menos firme. Apesar da atuação calorosa de Nicole Kidman, a vida familiar de Saroo é pintada em pinceladas tão largas que elas nem chegam a compor um retrato. E incomoda, também, a propaganda insistente do Google Earth (a ferramenta, lançada em 2005, foi fundamental para que Saroo Brierly afinal identificasse seu vilarejo de origem). Mas a montagem de De Franceschi novamente dá a nota de excelência, na forma como sugere o extravio de Saroo entre seus dois mundos – e o desempenho de Dev Patel é tão genuíno e emotivo que carrega consigo, sozinho, todo o sentimento que o espectador a essa altura terá investido na figura de Saroo. Lion é feito para comover. E comove, antes de mais nada, pela largueza com que quer compartilhar a história desse personagem de bravura leonina.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista VEJA no dia 15/02/2017 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2017 |
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LION – UMA JORNADA PARA CASA (Lion) Austrália/Inglaterra/Estados Unidos, 2016 Direção: Garth Davis Com Sunny Pawar, Dev Patel, Nicole Kidman, Rooney Mara, Abhishek Bharate, David Wenham, Distribuição: Diamond |