Livro premonitório de Philip Roth ganha minissérie na HBO
Adaptada de um exemplo magistral de história alternativa, a minissérie 'The Plot Against America' fala de um futuro possível por meio do passado fictício
Philip Levin (Azhy Robertson), de 7 anos, acompanha inquieto as discussões entre os adultos reunidos na calçada: a uma criança, é impossível compreender por que causa tanta exaltação entre sua vizinhança judia de Nova Jersey o anúncio da candidatura presidencial de Charles Lindbergh — um herói americano que treze anos antes, em 1927, realizou o primeiro voo-solo transatlântico da história, entre Nova York e Paris, a bordo de um monomotor. Logo os motivos estarão claros até para o garoto: Lindbergh, um antissemita muito vocal, contrário à participação dos Estados Unidos na II Guerra Mundial e entusiasta de Adolf Hitler, derrota o presidente Franklin Delano Roosevelt na tentativa deste de se reeleger e imediatamente põe em prática um esquema de segregação e deportação de cidadãos americanos de origem judia, como os Levin. Na história de fato, a candidatura de Lindbergh foi um voo de galinha: Roosevelt se reelegeu e entrou na guerra em dezembro de 1941, depois do ataque japonês à base naval de Pearl Harbor. Mas, na realidade alternativa proposta pelo escritor Philip Roth (1933-2018) em Complô contra a América, o flerte americano com o fascismo se consuma em desdobramentos sinistros exemplificados pelas atitudes diversas dos membros da família Levin, da resistência armada ao colaboracionismo.
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Agora transformada na minissérie The Plot Against America, que estreia nesta segunda-feira 16, às 22h, na HBO, a noveleta que Roth publicou em 2004 se mostra não só um tanto profética como também urgente: na produção dos roteiristas David Simon e Ed Burns, a mesma dupla de séries excepcionais como The Wire e Generation Kill, a recriação em cores quentes e ritmos tranquilos da rotina de uma família de classe média em 1940 contrasta vivamente com o mal-estar que vai assomando nas ruas, na sala de casa, nos diners e nos escritórios. Esta não é uma história de tramas políticas, mas da refração da política sobre as vidas comuns — a crença fútil de Herman Levin (Morgan Spector), o pai, na solidez das instituições, que o leva a adiar até que seja tarde demais uma fuga para o Canadá; a sedução que a ideia de descartar uma identidade problemática exerce sobre o filho mais velho, Sandy (Caleb Malis); a facilidade com a qual a tia solteira (Winona Ryder) adere à promessa de ascensão em troca de colaboração; e sobretudo a perplexidade do pequeno Philip, o observador ao mesmo tempo menos equipado e mais lúcido da turbulência à sua volta.
Como a ítalo-americana My Brilliant Friend, outra série da HBO adaptada de uma fonte literária prestigiada, The Plot Against America se beneficia de maneira considerável da perícia com que seus produtores conjuram um personagem fundamental — a ambientação muito específica — para ressaltar por meio dela temas que, nas páginas do livro de Philip Roth, estavam menos próximos da superfície. Assim como My Brilliant Friend põe em primeiro plano a violência das relações pessoais a que as mulheres estavam submetidas na Nápoles dos anos 50, The Plot faz com que seu cenário tão rico em detalhes multiplique um recurso no qual Roth era mestre, o de reimaginar sua vida com outros rumos — é ele o menino Philip, e os outros personagens são seus próprios parentes. Aqui, na força da encenação, esse passado fictício ganha seu contorno mais assustador: o de um futuro possível.
Publicado em VEJA de 18 de março de 2020, edição nº 2678
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