‘Mank’, de David Fincher, é mergulho nos bastidores de ‘Cidadão Kane’
O diretor disseca a criação do clássico e põe um outro gigante ao lado de Orson Welles: o roteirista Herman J. Mankiewicz
Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman, em mais uma atuação extraordinária) mal passou dos 40, mas está em queda livre rumo ao fundo do poço. Nem uma década antes, ele era um dos roteiristas mais respeitados e bem pagos de Hollywood; agora, cambaleia bêbado pelas beiradas da indústria de cinema, lúcido o suficiente apenas para irritar inimigos — e amigos — com suas tiradas corrosivas e perceber-se impotente para conter seu impulso de autodestruição. Só alguém como Orson Welles (Tom Burke) ousaria entregar a ele um projeto. Mas o garoto prodígio que dois anos antes, aos 23, provocara uma onda de pânico no país com sua encenação radiofônica de A Guerra dos Mundos quer atuar na própria estreia na direção, e quer que o filme corresponda em magnitude à lenda em que ele já se tornou. Precisa de um roteirista não apenas brilhante, mas também intrépido. Mankiewicz é o candidato natural. Despachado para um rancho no deserto com uma secretária e uma enfermeira (Lilly Collins e Monika Gossmann) que têm instruções rígidas e obviamente inúteis para mantê-lo longe da garrafa, preso à cama por causa de uma fratura e incessantemente cobrado por Welles, ele tira da sucessão de acontecimentos que acarretou sua ruína um roteiro como poucos até então — ou desde então.
Há oitenta anos Cidadão Kane, o resultado dessa refrega, encabeça praticamente todas as listas de melhores filmes. A história que ele conta e a história em torno de sua criação — e de suas repercussões — são tão ricas que renderam um sem-número de livros, e poderiam render outro tanto de filmes. Assim como Mank (Estados Unidos, 2020; desde a sexta-feira 4 na Netflix) disputa a real autoria dessa obra-prima, um outro roteiro qualquer poderia se concentrar na contribuição também ela autoral do diretor de fotografia Gregg Toland, o responsável pelas icônicas câmeras baixas e pela então inédita profundidade de campo, que se provaria revolucionária: com todos os elementos da cena em foco, cabia ao espectador decidir para onde dirigir seu olhar.
Mas é improvável que qualquer outro filme possa se equiparar a Mank. Havia quase três décadas o diretor David Fincher queria filmar o único roteiro escrito por seu pai, o jornalista Jack Fincher, morto em 2003, sem conseguir financiamento para uma produção em preto e branco sobre os bastidores da indústria. Desde então, porém, a Netflix mudou de maneira radical o panorama do entretenimento — e Fincher, que produziu para o gigante do streaming as séries House of Cards e Caçador de Mentes e tem com ele um acordo temporário de exclusividade, ganhou o sinal verde.
A demora trabalhou a favor de Mank. Nesse intervalo, Fincher passou ele próprio do garoto prodígio de videoclipes como o Vogue, de Madonna, e de filmes como Seven (1995) e O Clube da Luta (1999) para o cineasta maduro e formidavelmente proficiente e disciplinado de Zodíaco (2007), A Rede Social (2010), Garota Exemplar (2014) e Caçador de Mentes (2017-2019). As manobras visuais atordoantes dos primeiros trabalhos foram trocadas por um apuro e restrição narrativa obsessivos; não há cineasta em atividade que se compare a Fincher no nível de exigência — na verdade, talvez só em Stanley Kubrick (1928-1999) ele encontre paralelo nesse quesito, assim como no domínio técnico e na marca inconfundível de suas imagens. Mank não é só um filme passado na Hollywood dos anos 30 e início dos 40; é feito como na Hollywood do período, mas (um “mas” colossal) antecipando o arrojo conceitual, as inovações visuais e as conquistas narrativas que seriam experimentados pela primeira vez em 1941, quando Cidadão Kane foi lançado.
+ Compre o livro William Randolph Hearst, Orson Welles, and Citizen Kane
Mal lançado, diga-se: o protagonista Charles Foster Kane era uma versão sem disfarces do magnata da imprensa William Randolph Hearst (Charles Dance), de quem Mankiewicz tinha sido próximo e em cujas festas fora presença constante — assim como Louis B. Mayer (Arliss Howard), o chefão da MGM, que em 1934, junto com Hearst, executou uma bem-sucedida campanha de fake news contra o candidato democrata ao governo da Califórnia. A malevolência dessa interferência política no meio da miséria da Grande Depressão horrorizou Mankiewicz, cujo temperamento era um curioso misto de cinismo e idealismo, e tornou-se o pivô de sua derrocada na indústria. O roteirista, além disso, era muito amigo da atriz Marion Davies (um belíssimo desempenho de Amanda Seyfried), a jovem amante de Hearst, que Cidadão Kane retratava em sua solidão melancólica, rodeada de quebra-cabeças na gigantesca mansão de San Simeon.
Hearst não perdoou Welles por expor Marion — nem sua própria megalomania, suas fixações íntimas e seu apetite pelo poder, e cuidou de arruinar a carreira do filme. Em um primeiro momento, conseguiu. Mas logo Cidadão Kane começou a adquirir a estatura que de fato lhe cabia: a de um evento transformador de toda uma arte. Se hoje sua inovação não é tão bem percebida, é porque o cinema absorveu tudo o que Welles, Mankiewicz e Toland criaram ali, e que agora, no compasso de seus diálogos, nas interpretações superlativas e no seu virtuosismo discreto mas intransigente, Fincher ressalta e repropõe de maneira deslumbrante. Cidadão Kane concorreu a nove Oscar e ganhou só um — o de roteiro. No ano que vem, Mank talvez possa fazer-lhe justiça também na premiação.
Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716