Na série ‘The Mosquito Coast’, pai narcisista põe família em fuga infernal
A produção altera e reconfigura o romance do americano Paul Theroux — e não só o enraíza no contexto atual como faz assim justiça plena ao seu espírito
Em uma entrevista recente, o americano Paul Theroux disse que, ao escrever o romance A Costa do Mosquito, publicado em 1981, imaginou o personagem de Allie Fox como um Joseph Smith, o febril fundador do mormonismo, ou como um Jim Jones, o líder da seita que apenas três anos antes, em 1978, induzira mais de 900 de seus seguidores ao suicídio coletivo — um homem tão envolvido com as próprias convicções que seu universo começa e termina nelas, e tão narcisista que é ao mesmo tempo o profeta e o deus que ele anuncia. Mas o rebanho de Allie é pequeno: consiste na mulher e nos dois filhos, cuja vida ele domina em todos os aspectos e aos quais prega sem descanso sua doutrina de autossuficiência, de crítica ao consumismo e de indignação com a letargia intelectual e o conformismo bovino em que a América se acomodou. Allie imagina um outro mundo para si e a família — um mundo que eles mesmos vão forjar a partir do mínimo de recursos, mais ou menos como a fábrica de gelo que ele acabou de inventar, capaz de funcionar só à base de água e fogo, sem eletricidade.
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No livro e na sua adaptação fiel — mas não muito bem-sucedida — de 1986 para o cinema, essa fábrica é a quimera que faz Allie transplantar o clã dos Estados Unidos para uma parte selvagem da América Central. Não, porém, em The Mosquito Coast (Estados Unidos, 2021), cuja primeira temporada acaba de estrear na AppleTV+. Aqui, mal o espectador tem a chance de ver os Fox em seu hábitat espartano — uma velha casa de fazenda na Califórnia em que telefones, celulares, televisão e computadores são proibidos — e eles são descobertos e se põem em fuga da NSA, a Agência de Segurança Nacional. A razão pela qual o governo persegue os Fox é um mistério que não será elucidado até o desfecho desta temporada inaugural (três dos sete episódios já estão disponíveis): estrito senso, só um quarto do livro foi utilizado nesta primeira leva.
As alterações em relação ao enredo original são tão numerosas e profundas que “reimaginação” é o termo mais adequado para a série. E, no entanto, ela encarna à perfeição o espírito de derrocada e de paradoxo em que o romance foi escrito, e a era de certezas e verdades absolutas para a qual foi adaptado: os Fox desprezam a arrogância e a indiferença americanas, mas as levam consigo em cada passo da viagem, dispondo à sua conveniência das pessoas (Paul Theroux é um viajante experimentadíssimo, e sabe do que fala). Sobretudo, o criador Neil Cross, de Luther, encontra um Allie ideal em Justin Theroux, que é sobrinho de Paul mas, mais importante, um ator excelente, um roteirista respeitado e — aí, sim, o parentesco pode ter algo a dizer — alguém íntimo da visão e da trajetória do tio.
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É mérito de Justin que Allie agora não mostre só o lado exaustivo que Harrison Ford tornou preponderante no filme de 1986, dirigido por Peter Weir — a mania de grandeza e de certeza, o otimismo delusório, a energia desenfreada, o controle ferrenho sobre a família. No desempenho repleto de nuances de Justin, essas qualidades exasperadoras vêm entremeadas com lábia, com sedução, com uma aptidão prática que é um prazer em si mesma e com uma capacidade real para a alegria. Allie irrita, mas também contagia. É por isso, por exemplo, que consegue persuadir dois “coiotes” a ajudá-lo a empreender uma fuga ao contrário, dos Estados Unidos para o México, cruzando a fronteira pelo Deserto de Sonora — uma extensão tão mortal que a natureza ali é que faz o trabalho de patrulha. As consequências são dramáticas e de longa repercussão. E Allie, que tanto se orgulha de tirar a família de perigo após perigo, não registra que ele mesmo é que os cria, um após o outro, e deixa um rastro de vítimas colaterais atrás de si.
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Também a mulher de Allie, Margot, e os filhos ganham impacto redobrado sobre os rumos da história. Margot é um enigma, mas Melissa George, que a interpreta, deixa pistas sobre um passado tão complicado quanto o do marido, ou mais. Como no livro, o caçula Charlie (Gabriel Bateman), de seus 14 anos, idolatra o pai. Mas não só os traumas da viagem começam aqui a conferir expressões sinistras à idolatria, como ele perde a posição de principal ponto de vista para Dina (Logan Polish), 15 anos e única detentora de clareza e senso de absurdo na família. Bateman e Polish estão fantásticos em seus papéis: dois adolescentes a quem o pai promete uma aventura como a de A Família Robinson enquanto os conduz para o horror de O Coração das Trevas.
Publicado em VEJA de 12 de maio de 2021, edição nº 2737
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