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Isabela Boscov

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‘Quiz’ reconstrói escândalo real em programa que inspirou ‘Show do Milhão’

Na ágil minissérie, o diretor Stephen Frears relembra caso que sacudiu 'Quem Quer Ser um Milionário?'. Moral da história: a certeza é o ouro dos tolos

Por Isabela Boscov Atualizado em 4 jun 2024, 15h00 - Publicado em 9 out 2020, 06h00

Depois de anos se perguntando como parar de levar surra de audiência da estatal BBC até em coberturas abertas como a do funeral da princesa Diana, a rede britânica ITV topou com uma galinha dos ovos de ouro. Sem muita convicção, comprou da produtora Celador uma versão renovada de um dos formatos mais antigos da TV, o do programa de questionário, e repentinamente viu seus números explodirem: levado ao ar pela primeira vez em setembro de 1998, Quem Quer Ser um Milionário? chegou a mobilizar mais de um terço da população do Reino Unido a cada noite de transmissão. A novidade da fórmula, e o que tornava a torcida pelos candidatos tão tensa e feroz, estava em duas singelezas. Primeiro, as respostas em múltipla escolha, que faziam os jogadores vacilarem entre as opções enquanto a plateia do auditório e a de casa prendiam a respiração. Segundo, e não menos importante: a cada rodada o valor do prêmio dobrava, começando em 100 libras até chegar a 1 milhão. Da ABC americana (leia-se, Disney) à televisão nepalesa e a brasileira (no Show do Milhão de Silvio Santos e, depois, em um quadro do Caldeirão do Huck), o formato rodou o mundo e serviu de mote ao ganhador do Oscar Quem Quer Ser um Milionário?, de 2008. A galinha continua a botar seus ovos reluzentes: não só o conceito sobrevive em várias reedições, como a própria ITV extraiu daí ao menos dois belos derivados — um documentário campeão de audiência, em 2003, e a minissérie Quiz (Inglaterra, 2020), agora disponível nas plataformas que têm o canal AMC.

Dirigida com agilidade e muita vivacidade por Stephen Frears, Quiz trata do escândalo que sacudiu o programa no início dos anos 2000 — a acusação de que o major do Exército Charles Ingram (o excelente Matthew Macfadyen) trapaceara seu caminho até a vitória em conluio com sua mulher e outro jogador. Em seus melhores momentos, como no longa A Rai­nha, a minissérie A Very English Scandal e também esta Quiz, Frears é um craque em dissecar com clareza eventos reais complicados e, simultaneamente, falar do zeitgeist, o “espírito do tempo”, por intermédio deles. Assim, Quiz é uma recriação veloz e cômica do escândalo e do julgamento que, em 2003, os Ingram enfrentaram no tribunal. E é também uma reflexão inteligente sobre aquilo a que, nos dias de hoje, se dá o nome de “criar uma narrativa”.

Como sempre, Frears ancora tanto a ação como a reflexão de maneira magistral nos personagens, em especial no enigma que é Ingram. Um sujeito meio excêntrico, ele fazia cara de quem estava boiando, hesitava até exasperar o apresentador Chris Tarrant (Michael Sheen, impagável) e aí, na última hora, acertava a resposta, quase sempre escolhendo uma opção que descartara até ali. Enfim, era (ou parecia ser) uma espécie de Forrest Gump dos conhecimentos gerais. Sua própria presença ali vinha envolta em uma bruma de suspeita: seu cunhado e sua mulher (Sian Clifford, a sensacional irmã de Fleabag), ambos fanáticos das noites de questionário no pub local, já haviam participado do programa, e talvez não tivessem agido sempre com lisura.

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O que torna a minissérie tão prazerosa, porém, não é apenas ver o emaranhado que a ITV e a Celador encontraram quando começaram a puxar o fio dessa meada: é estar convicto de uma explicação para o “caso Ingram” no primeiro episódio, mudar completamente de opinião no segundo e não ter mais certeza de nada no terceiro. Quiz não ensina o espectador só a duvidar dos outros. Ensina-o, antes de mais nada, a duvidar de si mesmo.

Publicado em VEJA de 14 de outubro de 2020, edição nº 2708

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