Sedutor e perigoso: francês Tahar Rahim exala ameaça em minissérie
Como uma figura verídica que sabia exatamente qual tentação oferecer às suas vítimas, ele está em 'O Paraíso e a Serpente'
Em 1975, baseado na tailandesa Bangcoc, Charles Sobhraj apresentava-se como Alain Gautier, negociante de pedras preciosas casado com a franco-canadense Monique — na verdade, Marie-Andrée Leclerc, que ele conhecera coisa de oito meses antes e arrebatara com a velha conversa do “você é muito mais linda do que imagina e merece um homem que reconheça isso”. Fossem quais fossem os sentimentos — se é que ele os tinha — de Sobhraj por Marie-Andrée, ela oferecia a ele uma fachada conveniente tanto para suas negociatas quanto para sua outra fixação: atrair mochileiros para o apartamento no qual sempre havia uma festa rolando à volta da piscina, entretê-los e então cuidar deles quando eles ficavam doentes — porque o próprio Sobhraj os envenenava. Nascido em Saigon, filho de mãe vietnamita e pai indiano, e criado na França, país do qual era cidadão e pelo qual nutria rancores reais e imaginários, Sobhraj sabia que, apesar de seu notável dom de sedução, sem a presença da namorada de feições europeias — a quem a inglesa Jenna Coleman dá um ar ora hipnotizado, ora atarantado — ele teria dificuldade em ganhar tamanha confiança dos jovens viajantes. Os quais, depois da estada no aprazível condomínio de Bangcoc, costumavam desaparecer no mundo. Às vezes, as fronteiras da “trilha hippie” asiática registravam carimbos nos passaportes dessas pessoas — mas delas mesmo não havia nem sinal.
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O falsificador, fraudador, ladrão, contrabandista, psicopata e assassino serial Sobhraj é dessas figuras cujo íntimo não há como desvendar, até porque evidentemente ele nunca funcionou nos termos pelos quais os seres humanos reconhecem uns aos outros. Mas, se o interior do protagonista talvez seja um oco desorientador, O Paraíso e a Serpente (The Serpent, Inglaterra, 2021), minissérie da BBC que acaba de estrear na Netflix, traça com muita eficácia aquilo que é possível desenhar: os seus contornos, adivinhados graças a Herman Knippenberg (Billy Howle), um funcionário subalterno da Embaixada da Holanda que, apesar de continuamente rechaçado por seu embaixador, por diplomatas de outros países e pela polícia, se obstinou em descobrir o paradeiro de um jovem casal de turistas holandeses que jamais voltara para casa.
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Ziguezagueando sem parar entre 1975-1976 e pontos diversos do passado, os oito episódios criados pela mesma dupla de Ripper Street exigem atenção, mas propiciam um pouco da sensação vivida pelas pessoas cujo caminho se cruzou com o de Sobhraj: o de muito aos poucos montar um pequeno pedaço do quebra-cabeça que ele era. O primeiro e grande trunfo é a atuação central de Tahar Rahim, um ator excepcional que estourou em O Profeta, de 2009, precisamente pela habilidade com que interpreta personagens que, por sua vez, estão eles próprios interpretando um personagem ou envergando uma persona. Como Sobhraj/Gautier, o francês Rahim instiga curiosidade ao mesmo tempo que exala ameaça; é suave e insinuante, mas também ultracontrolado e eficiente, além de intimidador — e são particularmente desestabilizadoras as cenas em que, de um instante para o outro, se vê nos olhos de suas vítimas que elas descobriram ser isso, vítimas, e não hóspedes ou amigos.
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Tão importante quanto a própria pessoa de Sobhraj, porém, é o ambiente em que ele floresceu. Com a Guerra do Vietnã nos seus estertores, a vizinha Tailândia consolidou-se como ponto de partida da chamada “trilha hippie” que levava do Sudeste Asiático a Índia, Paquistão, Nepal, Tibete e Afeganistão, que os ainda crentes no “paz e amor” percorriam atrás de aventura, iluminação espiritual ou haxixe. A essa altura, não só esse sonho já adquirira o travo amargo dos individualistas e hedonistas anos 70, como o turismo de mochila já virara um fato tão banal e irritante quanto lucrativo para as populações locais. Nada havia de digno de nota em mais um ocidental passando mal na rua, ou sumindo no meio de cidades apinhadas ou montanhas remotas. Só Knippenberg pareceu se incomodar com isso. A meada de que ele puxou o fio, porém, está longe de ser deslindada.
Publicado em VEJA de 7 de abril de 2021, edição nº 2732
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