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Isabela Boscov

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Na 3ª temporada, “Stranger Things” volta ainda mais viva e vibrante

Espera de um ano e meio valeu a pena: nova leva tem ideias instigantes e uma trama muito bem dividida entre um elenco entrosado – e cada vez maior

Por Isabela Boscov Atualizado em 6 jul 2019, 15h00 - Publicado em 6 jul 2019, 15h00

Certas somas são muito maiores do que as suas partes. Por exemplo, a cena do primeiro episódio da nova temporada de Stranger Things em que os amigos de Dustin (Gaten Matarazzo) topam andar quilômetros até o topo de uma colina para ajudá-lo a instalar ali uma antena caseira, mas superpotente, com a qual ele poderá se comunicar com a namorada que arrumou no acampamento de verão. Ninguém acredita que Dustin tenha mesmo essa namorada chamada Suzie, que é mórmon, mora longe dali, em Utah, é incrivelmente esperta e ainda mais bonita que Phoebe Cates (para os não-iniciados, a atriz que fazia a beldade teen em Gremlins). Mas, acreditando ou não, amigo é amigo, e é para essas coisas – para passar horas ouvindo Dustin mexer no rádio sem conseguir falar com Suzie nenhuma. Quando anoitece e a Lua sobe por cima dos campos e das luzes da cidade de Hawkins, tão pequena lá na distância, é um sonho: fui transportada imediatamente para um lugar que talvez só exista na minha memória sem nunca, talvez, ter existido na realidade – algum momento mágico entre a infância e a adolescência em que o mundo parecia especialmente grande, lindo, e cheio de mistério.

Stranger Things
(Netflix/Divulgação)

Não vou dizer que Stranger Things é uma série perfeita (nem faço a menor questão de que seja): sempre se poderia pôr algum reparo aqui e ali. Mas, depois de um ano e meio fora do ar, ela volta mantendo essa qualidade intangível, que às vezes brota sem aviso e que é poderosa: tem o dom de evocar e de transportar. E, nesta terceira temporada, esse sentimento de nostalgia que acomete até quem nasceu tarde demais para viver uma infância como essa fica ainda mais forte, porque Hawkins está em transformação. O primeiro shopping center da cidade acaba de ser inaugurado, e ele está fazendo tudo mudar. Hawkins, que já era bastante peculiar, agora nunca mais vai ser a mesma. Por razões extraordinárias e que não podem ser reveladas, porque qualquer coisa que se diga sobre a trama é spoiler. E por razões tristemente conhecidas, também: daqui para a frente, os moradores de Hawkins vão mais e mais se encontrar sob luz artificial e ar-condicionado, vão comer fast food de que não precisam, vão querer comprar roupa da mesma marca, vão preferir lá dentro a lá fora.

Stranger Things
(Netflix/Divulgação)

Só para constar: o sucesso instantâneo de Stranger Things, em 2016, deu margem a teorias curiosas, que a Netflix impulsionou e muita gente comprou: os criadores da série, os gêmeos Matt e Ross Duffer, teriam feito uso de algoritmos mais ou menos miraculosos, capazes de mapear os gostos e expectativas do público de forma a entregar a ele exatamente o que ele deseja. No mundo de Ponta-Cabeça, talvez funcione assim. Neste aqui, experimentos desse teor ainda não renderam nada de minimamente palatável. Stranger Things é fruto das mesmas – e fascinantes – ferramentas narrativas de sempre: o talento para recriar o familiar enquanto se inventa o novo, e o dom para excitar a imaginação ao mesmo tempo em que se conquista pelos sentimentos.

Leia a seguir a resenha completa:


Terceira temporada de ‘Stranger Things’: nem o passado é para sempre

Série continua nostálgica como sempre – mas até à fictícia cidadezinha de Hawkins as transformações chegam

A cidadezinha de Hawkins, no Estado de Indiana, não existe de fato — mas existe em toda parte. Se não mais na realidade, pelo menos na imaginação coletiva americana: é o lugar em que as férias de verão parecem eternas, em que as crianças saem para a brincadeira de manhã e só voltam à noite, em que os adolescentes cumprem seus ritos sociais nos diners, nos parques de diversões ou rodando de carro. E, assim como as cidadezinhas de Tubarão, das histórias de Stephen King ou de E.T. — O Extraterrestre e De Volta para o Futuro, também a Hawkins de Stranger Things é palco de eventos extraordinários. Eles começaram dois anos antes, em 1983, com o sumiço do garoto Will Byers (Noah Schnapp), a aparição de uma menina de cabeça raspada que atende por Eleven (Millie Bobby Brown) e a erupção de um mundo subterrâneo e distorcido — o Mundo de Ponta-Cabeça. Com seus poderes psíquicos sem paralelo, Eleven selou o portal para essa outra dimensão. Ou é isso que se acreditava: agora, na terceira temporadada série, desde a quinta-feira 4 na Netflix, vê-se que as possibilidades bélicas da criatura que domina Ponta-Cabeça haviam já atraído a atenção de gente em outras partes do mundo. Hawkins mais uma vez vai se tornar o epicentro de ocorrências fantásticas — e de ocorrências bem mais prosaicas, mas não menos ameaçadoras à sua existência: esse pedaço perfeito da América acaba de ganhar seu primeiro shopping center. Mal suas portas se abriram, ele já está transformando Hawkins numa outra criatura.

Stranger Things
(Netflix/Divulgação)

Lançada em 2016, Stranger Things foi o primeiro fenômeno de massa do streaming e talvez o único até aqui em escala global (não foi em todos os territórios que a espanhola La Casa de Papel virou mania). Muito próxima e já tão distante, a década de 80 se presta ao retrato de uma era idílica, em que telefones ficavam pregados na parede e interatividade era o que acontecia quando crianças como Mike (Finn Wolfhard), Dustin (Gaten Matarazzo), Lucas (Caleb McLaughlin), Will e Eleven se reuniam para jogar Dungeons & Dragons no tabuleiro. Os anos 80 sediaram também uma explosão do cinema adolescente e das aventuras juvenis, e os criadores da série, os gêmeos Matt e Ross Duffer, conhecem tudo o que se produziu nela: são mestres em costurar citações e referências em um feitio que soa novo porque não deixa de sê-lo — é a sua metabolização particular dessa matéria-prima. Mas, como é comum nos casos de sucesso repentino, na segunda temporada os Duffer titubearam entre repetir e evoluir.

Stranger Things
(Netflix/Divulgação)

Nesta terceira incursão, eles recobram a segurança e progridem em várias frentes. Seus protagonistas agora estão em descompasso: alguns, como Will, mantêm um pé na infância, enquanto os outros só pensam em garotas. O xerife Hop (David Harbour), que adotou Eleven, não aguenta mais vê-la aos beijos com Mike, e descobre o que é ter uma filha que bate a porta do quarto na sua cara várias vezes ao dia. Os novos personagens provam ser um deleite, como a garota Robin (Maya Hawke), que não para de zoar com Steve (Joe Keery), ex-galã do colegial que agora vende casquinhas na sorveteria do shopping (já outras parcerias, como a do xerife com Joyce, vivida por Winona Ryder, resultam cansativas). A lista de citações seria interminável — algumas até se adiantam à cronologia da série, como a piscadela para Jurassic Park, de 1993 —, mas, quanto menos se souber da nova trama, melhor.

Stranger Things
(Netflix/Divulgação)

O que pode ser dito é que o flanco em que Stranger Things mais progride é o dessa personagem principal — Hawkins, que nem sabe disso ainda mas está já sendo integrada a um modelo urbano em que as cadeias de comércio invadem a paisagem, os shopping centers se impõem como paraísos climatizados e a expansão rumo aos subúrbios condena à decadência o centro tradicional. Nas vezes em que os protagonistas agora saem da luz artificial para o mundo, os Duffer fotografam as noites no campo como um sonho banhado pela luz da lua: a velha Hawkins é um éden prestes a desaparecer. Nem em uma série tão nostálgica quanto Stranger Things o passado pode durar para sempre.

Publicado originalmente na revista VEJA de 10 de julho de 2019, edição nº 2642

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