Tenet, de Christopher Nolan, é filme vertiginoso para sentir, não entender
O diretor se impõe um nível insano de dificuldade, fazendo correr os acontecimentos para trás e para a frente em cena
“Não tente entender; sinta”, diz a cientista ao apresentar ao Protagonista (John David Washington) o segredo guardado em seu laboratório: balas que se descravam da parede e disparam para dentro do cano da arma quando se aperta o gatilho, objetos que sobem da gaveta para a mão quando se faz o gesto de soltá-los. O que é bom para o Protagonista é bom para a plateia: Tenet (Estados Unidos/Inglaterra, 2020), que finalmente estreia no país depois dos sucessivos adiamentos impostos pela pandemia, funciona melhor quanto menos se tenta compreender as brincadeiras vertiginosas do diretor Christopher Nolan com as leis da física. Esses objetos de comportamento desconcertante, diz a pesquisadora interpretada com secura persuasiva pela francesa Clémence Poésy, são as sobras de uma guerra futura; alguém, em algum ponto do tempo, descobriu como inverter a entropia de coisas e pessoas. E, quanto mais coisas e pessoas forem assim invertidas, mais o tecido de que é feito o universo vai se esgarçar, até se desfazer. Será o fim de tudo, a não ser que o Protagonista o impeça — tarefa para a qual foi escolhido por pessoas misteriosas depois que, na formidável sequência de abertura, conseguiu cumprir uma missão em meio a um ataque terrorista à Ópera de Kiev. Seu recrutador lhe dá, como arma, somente uma palavra: “tenet”, que importa menos pelo significado (“doutrina”, “princípio”) e muito mais por ser um palíndromo — lê-se da mesma forma da frente para trás e de trás para a frente.
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Essa senha leva o Protagonista a um facilitador amável e jovial, Neil (Robert Pattinson, arrasando no papel), e a uma traficante de armas indiana (a magistral Dimple Kapadia, estrela de Bollywood), que apontam a verdadeira meta: o criminoso de alcance global Sator (Kenneth Branagh), que se fez literalmente a partir dos escombros da União Soviética, escavando lixo nuclear numa das cidades secretas em que o regime escondia manufaturas ou tecnologias estratégicas. Sator é perigosíssimo. O único caminho até ele é sua mulher, Kat (Elizabeth Debicki), uma comerciante de arte que ele mantém à sua mercê por meio de chantagem. Kat fará qualquer coisa para retirar de Sator a guarda de seu filho — inclusive, se não houver outra saída, ajudar o Protagonista.
Dito assim, pode parecer que Tenet segue uma trajetória linear, do ponto “a” para o “b”, e dele para o “c”. Nolan, porém, faz coisas excitantes com essa premissa. Emprega-a como pretexto para uma intriga internacional que se desdobra ao redor do mundo, de Mumbai e da Baía de Nápoles à Estônia e, em cada uma das locações, orquestra sequências de ação que, se já têm alto impacto da primeira vez em que são vistas, se desdobram em camadas e camadas de complexidade cada vez que Nolan volta a elas: quando os quadros se completam, percebe-se que vários fluxos de tempo diferentes se entrecruzam em cada cena, com efeito atordoante e resultados visuais que se pode descrever, no mínimo, como inusitados.
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Tenet é um bocado complicado de ver, mas não se compara a quão complicado foi de fazer. Nolan é um dos últimos puristas que ainda filmam em película e fazem questão de reduzir ao mínimo o uso de efeitos digitais — além de um dos poucos diretores com disposição (e orçamento) para comprar um Boeing 747 só para destruí-lo na colisão com um edifício, em um aeroporto de verdade — não uma carcaça ou uma maquete, mas um Jumbo inteiro e em funcionamento. “É mais barato do que construir cenários e contratar centenas de horas de computação gráfica. Sem falar que fica muito melhor”, justifica o diretor (leia a entrevista). Do seu elenco, Nolan exigiu aprendizados que desafiam a fiação neuronal: andar, falar, dirigir e lutar de trás para a frente. Washington, que foi jogador profissional de futebol americano, é o ator de quem mais se pediu. “Meu negócio sempre foi levar a bola adiante. Aprender a fazer tudo do avesso de modo convincente, sem parecer um idiota, foi sofrido”, disse a VEJA o ator, que é filho de Denzel Washington e faz tão bonito em Tenet quanto o fez em Infiltrado na Klan.
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Aqui é hora de apertar o botão de pausa e lembrar que aquilo que a plateia percebe como o tempo correndo ao contrário é, na verdade, outra coisa. Explicada da maneira mais sucinta possível, a entropia é o que faz o gelo derreter quando tirado do congelador, ou um pneu murchar quando a válvula é aberta — é a tendência da energia de passar de estados de maior concentração para estados de maior dispersão. No mundo real, nunca se viu o gelo ficar mais gelado, ou o pneu mais cheio. A parte impenetrável do que Tenet propõe é que o tempo em si corre da maneira habitual ao redor das inversões e reversões entrópicas. Mas, antes que o espectador se pergunte se é o caso de se embrenhar pela Segunda Lei da Termodinâmica, ou de avaliar os méritos da Teoria da Relatividade Geral e da mecânica quântica, vale reiterar a recomendação feita lá no começo pela cientista: se qualquer dos princípios apresentados no filme faz sentido ou não, pouco importa. Com sua ação bombástica e criativa casada à trilha pulsante e às atuações meticulosas, Tenet não é feito para ser compreendido. É para ser sentido, e experimentado. Em um aspecto, porém, Nolan não tem meio de reverter a entropia: desde julho até aqui, a expectativa criada em torno do filme se dispersou da forma como manda a física — irrevogavelmente.
Publicado em VEJA de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711
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