‘The Crown’: Diana e Thatcher abalam a realeza em nova temporada
Em sua quarta fase, a série mergulha na crise de identidade da monarquia, com o atordoamento da popularidade da princesa e a transformação pelo thatcherismo
Uma notícia alvoroça o castelo escocês de Balmoral: na propriedade vizinha, um turista atirou de forma desastrada em um cervo imperial macho; feriu-o de morte, mas não o matou. A presa raríssima agora está em algum lugar das terras de Balmoral, agonizando, e a parentada de Elizabeth II se organiza em trilhas e tocaias, determinada a colocar uma segunda cabeça de cervo imperial na parede, para fazer par com o único outro espécime jamais abatido ali. “Vamos arrumar um rival para ele”, brinca a princesa Anne. Enquanto o animal vaga por locais ignorados, duas pessoas importantes vão ser submetidas ao crivo dos Windsor nesse segundo episódio da nova temporada de The Crown, que estreia na Netflix neste domingo, 15.
Margaret Thatcher, recém-eleita primeira-ministra, escolhe as roupas erradas para cada ocasião, não conhece nenhum jogo de salão, senta-se na cadeira intocável que foi da rainha Vitória. Falha miseravelmente na avaliação dos integrantes da família real (os quais, por sua vez, falham miseravelmente na avaliação de Thatcher, que os considera grosseiros, esnobes e desconectados de qualquer senso de realidade). Já a outra convidada passa no teste com honras: Diana Spencer, de 18 anos, encanta a família com seu frescor. Todos acham que é hora de o príncipe Charles se casar (incluindo Camilla Parker Bowles, a eterna amante dele), e Diana, vivaz e maleável, parece ser a candidata perfeita. Ao final do episódio, a escolha é sacramentada — e a segunda cabeça de cervo imperial afinal é montada na parede, de frente para a predecessora. E assim Peter Morgan, o criador e fabuloso roteirista de The Crown, prenuncia o que está por vir: a família real acaba de trazer para seu seio uma verdadeira rival. E, da mesma forma que o cervo, ela não vai se recolher quando for ferida. Vai, isso sim, agonizar em público e sangrar por toda parte.
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Escrever The Crown é um pouco como praticar salto ornamental. Parte-se de uma plataforma sólida, fincada em pesquisa, para um passo crucial no vazio, no qual se imagina o que aconteceu e o que foi dito atrás das portas mais bem cerradas do planeta. Morgan tem um talento singular para esse esporte: dedicou toda a sua premiada carreira a especular sobre os bastidores de passagens da história que têm uma face muito pública e, atrás dela, um emaranhado de versões contraditórias ou disputadas. Duelos, além disso, são seu grande interesse — o caminho pelo qual Tony Blair sobrepujou o amigo Gordon Brown no Partido Trabalhista britânico (em The Deal), o relacionamento volátil entre o ditador ugandense Idi Amin Dada e seu médico (em O Último Rei da Escócia), a rivalidade entre os pilotos de Fórmula 1 Niki Lauda e James Hunt (em Rush). Ou ainda, claro, o abismo que se abriu entre Elizabeth II e seus súditos por ocasião da morte de Diana, em 1997 (em A Rainha). Com a entrada em cena de Diana e de Margaret Thatcher, esta quarta temporada oferece a Morgan mais oportunidades de confrontação do que qualquer outra até aqui.
Quando o primeiro rumor de uma ligação entre Diana e Charles circulou e as câmeras a flagraram saindo de casa rumo ao jardim de infância no qual trabalhava, os ingleses — e o mundo — caíram fulminados de paixão. Estava inaugurada a era da celebridade que vigora até hoje, e que com a princesa atingiu frenesis ainda sem termo de comparação.
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De família muito mais antiga que os Windsor e com porte de princesa mas jeito de “gente”, Diana, talvez por ser muito alta e tímida, em geral reagia à atenção com uma viradinha de rosto, desviando aquele seu olhar cândido — como se estivesse adorando ver-se no centro da ação mas fosse modesta demais para se esbaldar com ela. Era um tique encantador, que a jovem atriz Emma Corrin reproduz à perfeição: sedenta de afeto, aprovação e calor, Diana tinha o dom instintivo de estimulá-los por onde passasse — exceto em Charles (Josh O’Connor), que nunca parou de se impacientar com sua princesa nem de amar Camilla (leia entrevista com O’Connor neste link).
O triângulo amoroso (que às vezes virava polígono), a luminescência pública de Diana, a sombra que ela jogava sobre o restante da família real — Morgan recria a discórdia não como ela foi percebida ao vir a público, bem mais tarde, mas como teria se desenrolado entre quatro paredes. Também as colisões entre Elizabeth II (Olivia Colman, sempre formidável) e Margaret Thatcher ganham destaque aqui, e pegam fogo quando a rainha decide peitar sua primeira-ministra e forçar a condenação dela ao apartheid na África do Sul. Se algo prejudica essa linha narrativa, é a atuação quase sempre desastrosa, de figura de cera, de Gillian Anderson. É chocante, por exemplo, contrastar a cena real da renúncia de Thatcher, disponível no YouTube, com a mixórdia que Gillian faz dela.
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Peter Morgan, porém, acerta em cheio na escalação do ilustre desconhecido Michael Fagan, astro do quinto episódio: no papel do desempregado que, em 1982, invadiu os aposentos da rainha no Palácio de Buckingham, o ator Tom Brooke dá um espetáculo. O próprio Fagan, hoje com 70 anos, reclamou das licenças artísticas do roteiro, mas pode-se argumentar que, onde o homem perde, a história ganha: sem demonizar o thatcherismo, Morgan entretanto se vale do triste e aturdido Fagan para destrinchar o preço terrível que parte dos ingleses pagou pela dinamização econômica.
E nisso, sempre, é que reside o interesse maior de The Crown. Se a agilidade do seu salto no vazio é irresistível, é na parte decisiva da manobra — a entrada n’água — que a série invariavelmente se supera: na maneira como se vale do frisson de ver a família real na intimidade para mergulhar em uma nação que há 1 000 anos continua aferrada à sua monarquia, e em um mundo que nunca deixa de se deslumbrar com sua pompa — e com suas rixas, suas fofocas, e sua permanência.
Publicado em VEJA de 18 de novembro de 2020, edição nº 2713
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