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Elena Ferrante, entre o pop e o cult

Último tomo da ‘Série Napolitana’ ajuda a entender o que faz a escritora italiana, que não chega a inovar a literatura, agarrar leitores e críticos

Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 21h10 - Publicado em 17 jun 2017, 09h07

A caçada do jornalista italiano Claudio Gatti à verdadeira identidade de Elena Ferrante, pseudônimo que assina alguns dos livros mais vendidos nos últimos anos em diversos países, entre eles o Brasil, foi uma operação de grandes proporções. Gatti revolveu os relatórios de finanças da editora romana Edizione E/O, perseguiu pistas e publicou suas descobertas ao mesmo tempo em quatro idiomas, por diferentes veículos: no Il Sole 24 Ore (Itália), no Frankfurter Allgemeine Zeitung (Alemanha), no Mediapart (França) e no jornal The New York Review of Books (Estados Unidos), de onde os resultados foram replicados mundo afora. O enorme interesse em torno de Ferrante se deve porque, se de um lado ela conquistou o público, de outro, feito que é raro na literatura, subjugou também a crítica. Um rápido exame dos textos da escritora, no entanto, permite ver que, apesar de bem escritos, os livros não apresentam inovação em estilo ou narrativa, aliás comparada ao neorrealismo do cinema italiano dos anos 1940. Com o lançamento no Brasil de A História da Menina Perdida, volume que encerra a Série Napolitana, aquela que deu maior projeção à autora, essa constatação se consolida. O texto é convencional, mas, com alguns dos episódios mais pesados de toda a saga, tende a ser devorado por quem o folhear. Difícil não se perguntar o que faz de Elena Ferrante o fenômeno capaz de mobilizar tanta gente – entre leitores, críticos e curiosos.

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O sucesso de Elena Ferrante pode mesmo parecer espantoso, se isolada a sua escrita, simples sobretudo na Série Napolitana. A saga investe mais nas tramas da narradora, Elena Greco (o nome é referência à Antiguidade Clássica, um dos elementos de afeição de Ferrante) ou Lenu, e sua melhor amiga, Rafaella Cerullo ou Lila, e nas memórias que Lenu tem da Itália, em especial a dos anos 1950 e 1960, do que em construir imagens poéticas ou fazer digressões intelectuais como Karl Ove Knausgaard, ao qual já foi comparada quando se acreditava que a sua literatura, como a do norueguês, fosse autobiográfica a ponto de beirar a autoficção. A descoberta daquela que pode ser a sua real identidade borra a comparação, mas não por completo, já que traços autobiográficos parecem sobreviver à devassa – sabe-se, por exemplo, que a tradutora Anita Raja, apontada como a verdadeira Ferrante, nasceu em Nápoles, palco da história, e se mudou de lá aos três anos de idade, e que seu marido, o escritor Domenico Starnone, de apelido Nino, como Nino Sarratore, a grande paixão de Lenu, foi criado na cidade na época em que transcorre boa parte da Série Napolitana.

 

    “Prólogo

     Apagar os vestígios

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     1.

     Hoje de manhã Rino me ligou, pensei que ele quisesse mais dinheiro e me preparei para negar. No entanto o motivo da chamada era outro: a mãe dele tinha desaparecido.

    ‘Desde quando?’

    ‘Faz duas semanas.’

    ‘E só agora você me liga?’

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    O tom deve ter parecido hostil, embora eu não estivesse chateada ou indignada, era apenas uma ponta de sarcasmo. Ele tentou contestar, mas de modo confuso, embaraçado, misturando o dialeto com o italiano. Disse que tinha certeza de que a mãe estava passeando em Nápoles, como de costume.

    ‘Inclusive à noite?’

    ‘Você sabe como ela é.'”

 

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Capa do livro ‘A Amiga Genial’, que abre a ‘Série Napolitana’ (Reprodução/Divulgação)

Por outro lado, é justamente essa simplicidade da escrita que pode explicar a presença dos grossos volumes da série nas listas de livros mais vendidos. Os livros são, acima de tudo, acessíveis. E Elena Ferrante não tem pudor de lançar mão de recursos de gêneros mais populares, como ganchos folhetinescos, triângulos amorosos, pistas e suspenses, para prender e arrastar o leitor por suas cerca de mil e quinhentas páginas.

A Série Napolitana conta a história da escritora Elena Greco, que por um jogo de Ferrante tem nome e profissão iguais aos seus, e de Lila ou Lina, como a maioria a chama, a grande parceira, rival e interlocutora de toda a vida. A saga das duas, que vão se tornar amigas ainda muito crianças e a partir daí se amar, se desentender, se afastar e se reaproximar diversas vezes, tem início em um bairro pobre de Nápoles nos anos 1940 e 1950, na infância entre os escombros da guerra e a tensão entre comunistas e fascistas ligados à máfia que empesteia o sul da Itália. Elena resgata a história em uma tentativa de recuperar a própria Lila. Ela começa a escrever ao saber do desaparecimento da amiga, que se esvai sem deixar traço, e passa a procurá-la, a investigá-la e a enfrentá-la na tela do computador que aprendeu com ela a usar.

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Algumas vezes, Lila assume o primeiro plano da narrativa ao ter episódios da sua vida recontados por Lenu, que os ouve de conhecidos em comum ou da própria Lila. Como quando elas se reencontram depois de um hiato, porque Lina, fragilizada e fora de si, manda chamar a amiga para fazê-la jurar que, se algo lhe acontecer, vai assumir os cuidados de seu filho, Gennaro, o Rino. Lila havia deixado o marido violento e o bairro ao lado de Rino e também de Enzo, um dos muitos garotos da vizinhança que eram apaixonados pela menina magricela, inteligente, arrogante e brava na infância. Enzo é filho de verdureiro e, agora, um proletário. Lila já não pode, portanto, ficar em casa dedicada a Rino, como fazia quando era sustentada por Stephano, um pequeno empresário dono de uma charcutaria. Lila também precisa trabalhar e vai conhecer o inferno da exploração – profissional e sexual – em uma fábrica de embutidos de um amigo de Nino que conheceu no mesmo veraneio em que iniciou um caso com o grande crush de Lenu. Caso, do segundo volume da tetralogia, História do Novo Sobrenome, que ajuda a explicar o hiato.

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Os relatos dos maus bocados vividos na fábrica de Bruno Soccavo são contados de um jato a Lenu, que dedica a eles boa parte do terceiro livro da série, História de Quem Foge e Quem Fica, livro em que Elena se casa, tem duas filhas e larga tudo pelo mesmo Nino que levou Lila a deixar o marido, um Nino que parece fazer filhos e abandoná-los pelo mundo. Como na descrição do país no pós-guerra, que a levou a ser comparada aos diretores neorrealistas, dedicados a retratar uma nação pobre, destruída e em busca de reconstrução, Elena Ferrante investe aqui em traços realistas. A fábrica é desenhada com tantos detalhes, do avental sujo de sangue usado por Lila ao dono que constrange funcionárias a se deitar com ele na sala de secagem, que é quase possível sentir o cheiro dos embutidos, das tinas onde Lila mete a mão e de onde a retira descarnada, em longos expedientes pagos por salários miseráveis.

 

“Acertou Bruno na cara e entre as pernas, berrou para ele você é um homem de merda, não tem nada aí embaixo, venha cá, tire pra fora que eu arranco, ‘strunz’.

Bruno a soltou, recuou. Tocou o lábio que sangrava, zombou constrangido, balbuciou: desculpe, pensei que podia haver ao menos um pouco de gratidão. Lila gritou: quer dizer que eu devo pagar tributo se não você me demite, é assim? Ele riu de novo, sacudiu a cabeça: não se você não quer, não quer, basta, já lhe pedi desculpas, o que mais preciso fazer? Mas ela, fora de si, agora começava a sentir no corpo o rastro de suas mãos e sabia que isso duraria, não era algo que se tirasse com água e sabão. Recuou para a porta e lhe disse: agora você se safou, mas, me demitindo ou não, juro que você vai maldizer o momento em que me tocou. Saiu enquanto ele murmurava: o que eu lhe fiz, não lhe fiz nada, venha aqui, se todos os problemas fossem esses, vamos fazer as pazes.

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Ela retornou a seu posto. Na época trabalhava em meio aos vapores das piscinas, era uma espécie de servente que entre outras coisas devia deixar o piso enxuto, um esforço inútil. Edo, aquele de quem quase arrancara a orelha, a observou com curiosidade. Todos, operárias e operários, ficaram de olho nela enquanto voltava furiosa da secagem. Lila não retribuiu o olhar de ninguém. Pegou um trapo, bateu-o sobre os ladrilhos e começou a esfregá-lo no pavimento pantanoso, escandindo em voz alta, ameaçadora: vamos ver se algum outro filho da puta vai querer testar. Seus colegas se concentraram no trabalho.”

 

O estado físico e emocional de Lila é tão deprimente quanto as condições de trabalho na fábrica de Soccavo, um personagem com quem conviveu durante um verão agradável à beira do mar, e que, apesar disso, nada faz além de dar a ela um emprego mal remunerado – o pouco que obtém de Bruno Soccavo, depois ela vai descobrir, deve na verdade a Michele Solara, um obscuro vizinho ligado à Camorra, a máfia napolitana, e outro de seus pretendentes. Lila, que no primeiro livro da série confidencia a Lenu às vezes sofrer com algo que batizou de desmarginação, quando todas as coisas e pessoas perdem o contorno e arriscam se imiscuir no ar, parece de novo prestes a se ver sem eixo e sem juízo, como acontecerá em outros trechos da série.

Embora perto de se casar com um recém-nomeado professor universitário, Pietro Airota, de um clã consagrado nos meios acadêmico e editorial – um clã que estenderá a ela uma ponte para o norte do país, para fora do bairro pobre de origem, rumo à ascensão intelectual e social que procura –, e se mudar para Florença, Lenu vai dedicar semanas inteiras a cuidar de Lila. Ela, que havia deixado Nápoles para estudar, volta à casa dos pais e engole o passo claudicante e a rigidez da mãe (há quem diga que as mães italianas rivalizam com as judias no envio de filhos ao divã) para, dali, acionar contatos, marcar médicos, conseguir um advogado e ainda publicar um artigo contra Soccavo em um influente jornal italiano.

 

Amigas ou rivais, nunca indiferentes

A dedicação é prova de uma amizade que, dirão as filhas de Lenu no futuro, parece a única coisa que de fato importa a ela. Nem tudo é cuidado e afago nessa relação, porém. Para Elena, Lila é uma pessoa cruel, que age com intenção e consciência para machucá-la e prejudicá-la sempre que é tomada pela inveja ou se sente em posição inferior, e em alguns episódios por puro gosto de fazer mal. No primeiro livro, por exemplo, quando a mãe de Lenu convence o pai a deixá-la prosseguir com os estudos, o que o pai de Lila veta por razões econômicas, a amiga a leva para um passeio na praia que a fará cabular a aula e – esse é o cálculo que Lenu imagina andar na cabeça de Lina – ser castigada com a retirada do apoio para continuar na escola. Mas a história é narrada por Lenu, o livro só traz a versão da protagonista e, ao leitor, resta a dúvida. Dúvida que aumenta quando, mais tarde, Lila rouba o próprio marido para comprar livros novos para a amiga usar na escola. Quando quer, ela sabe ser boa.

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Ponto forte dos livros, a dúvida se repete em outras ocasiões. Como no veraneio em que Lila se deixa envolver por Nino, que, ela intui – intui porque Elena nega –, é alvo de Lenu. Ela chega a perguntar se a amiga sente algo por Nino e se não se importa de que fique com ele. Lenu mente, esconde o que sente e Lila vive o caso mais romântico de toda a série. Depois, Elena vai remoer a mágoa sozinha. Mas, quando teve a chance de impedir Lila, preferiu o orgulho.

O episódio configura, para muitos, mais um capítulo de uma relação marcada pela disputa. Desde a infância, as duas concorreriam em tudo: para ver quem era a melhor aluna da escola, a mais bonita, a primeira se casar, a sair do miserê, aquela a ter maior brilho profissional.

Há quem se apresse em ver nessa relação de harmonias e dissonâncias, avanços e recuos, uma rivalidade inerente à amizade entre mulheres. É claro que para isso é preciso supor que homens nunca se enfrentam e nunca se desentendem. E esquecer que a história é narrada em primeira pessoa: tudo o que sabemos de Lila, a quem Elena atribui presunção, maldade e por vezes vulgaridade, sabemos por ela, Lenu, uma menina insegura e competitiva, que toda a vida toma a melhor amiga como medida. Lila tem seus rompantes, mas não cansa de dar sinais de generosidade, como quando se oferece para cuidar das filhas da amiga, para que ela possa viajar pela Itália para divulgar e vender seus livros, já por volta dos 30, 40 anos, no volume final da tetralogia, em que a própria Lila é uma mulher ocupada, dona de um negócio de informática ao lado de Enzo, com quem tem uma filha, Tina. É aqui, em especial depois que Elena se separa de Nino e vai morar no apartamento em cima do de Lila, que as duas vivem o período de maior proximidade, maior até do que na infância.

Da mesma forma, há quem se apresse em ver na relação um erotismo que seria também ele natural às mulheres, por causa da cena em que Lenu, aturdida ao ajudar Lila a se arrumar para o casamento que de alguma maneira as separará, em termos de contato e de status, sente nostalgia, medo e atração por ela. A cena, aliás, é uma das mais fortes do primeiro livro, o mais fraco dos quatro tomos da série.

 

“Chegou o dia 12 de março, um dia ameno, já de primavera. Lila quis que eu fosse cedo à sua velha casa, que a ajudasse a se lavar, se pentear, se vestir. Mandou a mãe embora, e ficamos sozinhas. Sentou-se na beira da cama de calcinha e sutiã. Ao lado estava o vestido de noiva, que parecia o corpo de uma morta.

(…)

Jamais a tinha visto nua, me envergonhei. Hoje posso dizer que foi a vergonha de pousar com prazer o olhar sobre seu corpo, de ser a testemunha participante de sua beleza de dezesseis anos poucas horas antes que Stephano a tocasse, a penetrasse, a deformasse, talvez, engravidando-a. Naquele momento foi apenas uma tumultuosa sensação de inconveniente necessário, uma situação em que não se pode virar o rosto para o outro lado, não se pode afastar a mão sem dar a reconhecer o próprio desconcerto, sem o declarar justo ao se retrair, sem portanto entrar em conflito com a imperturbada inocência de quem nos está perturbando, sem exprimir precisamente com a recusa a violenta emoção que nos abala, de modo que você se obriga a continuar ali, a deixar o olhar sobre os ombros de menino, sobre os seios de mamilos crispados, sobre os quadris estreitos e as nádegas rijas, sobre o sexo escuríssimo, sobre as pernas compridas, sobre os joelhos tenros, sobre os tornozelos arredondados, sobre os pés elegantes; e você finge como se não fosse nada, quando na verdade tudo está em ato, presente, ali no quarto pobre e um tanto escuro, a mobília miserável ao redor, sobre um piso irregular e manchado de água, e o coração se agita, e suas veias se inflamam.

Lavei-a com gestos lentos e acurados, de início deixando-a agachada no recipiente, depois lhe pedindo que ficasse de pé, e ainda tenho nos ouvidos o rumor da água que escorre, e me ficou a impressão de que o cobre da bacia tinha uma consistência semelhante à da carne de Lila, que era lisa, sólida, calma. Tive sentimentos e pensamentos confusos: abraçá-la, chorar com ela, beijá-la, puxar-lhe os cabelos, rir, fingir competências sexuais e instruí-la com voz doutoral, repeli-la com palavras bem no momento da maior intimidade. Mas no final restou apenas o pensamento hostil de que eu a estava purificando da cabeça aos pés, de manhã cedo, só para que Stephano a emporcalhasse durante a noite.

(…)

Ajudei-a a se enxugar, a se vestir, a pôr o vestido de noiva que eu – eu, pensei com um misto de orgulho e sofrimento — tinha escolhido para ela. O tecido se tornou vivo.”

 

 

Realismo, acima de tudo

A sequência de cenas do casamento é também das melhores de toda a Série Napolitana. Ali, num mesmo salão, Lenu enxerga pela primeira vez com distanciamento, graças ao horror de que é tomada, o bairro em que nasceu e cresceu. O olhar pousa de mesa em mesa, e vai compondo um painel que a faz sentir um inédito estranhamento: é gente pobre, grosseira e barulhenta, que fala alto, que quase se estapeia para ter a melhor bebida e o melhor petisco, e que se amedronta e se submete aos mafiosos, aos que têm poder.

Há ainda quem se apresse em classificar a literatura de Elena Ferrante como feminista, pelo simples fato de acompanhar as ditas e as desventuras de duas mulheres. Mas a obra de Ferrante não é necessariamente feminista – mais uma vez, essa decisão caberá ao leitor. O que se pode dizer com segurança é que a protagonista é, ela sim, simpática ao feminismo. O norte da escritora Elena Greco é um livro que Lila escreveu na infância, A Fada Azul, depois de ler Mulherzinhas, de Louisa May Alcott, e que depois queimou sem hesitação em uma fogueira em frente à fábrica de embutidos de Bruno Soccavo. Além disso, influenciada por leituras feministas que faz nos anos 1960, Lenu escreve uma mistura de ficção e ensaio que se tornará seu segundo livro e a levará a palestrar sobre feminismo pela Itália e em outros países.

Menos que feminista, porém, a literatura de Elena Ferrante é realista. Ela conta, como de fato é, a vida e as dificuldades encaradas por mulheres comuns, em uma rotina fragmentada entre filhos, amantes, atividades domésticas e ambições profissionais. E dessa perspectiva o seu realismo emerge antes como uma escolha ética do que estética. Ao pintar a vida de uma mulher sem tons exagerados, evita o sensacionalismo, a literatura ruim.

Domenico Starnone
Domenico Starnone (Princeton/Reprodução)

Para cravar o adjetivo “feminista”, seria preciso considerar machista ou masculina uma obra como Bartleby, o Escrivão, de Herman Melville, que mostra o dia a dia de um homem em um escritório, ambiente em que predominam ternos e gravatas.

A ideia de que Elena Ferrante é feminista foi, para muitos, comprovada pela matéria do jornalista italiano Claudio Gatti, que seguiu os grossos pagamentos realizados pela editora Edizione E/O, que tem nos livros da autora o seu maior faturamento, e chegou à tradutora Anita Raja. Uma mulher. Nada impede, no entanto, que Anita seja uma espécie de laranja do marido, o escritor Domenico Starnone — ou que os dois criem tudo os livros juntos, como numa brincadeira séria. Um experimento feito por um software de uma universidade italiana comparou o estilo de Ferrante ao de vários escritores italianos, e o que mais se aproximava do texto da autora era justamente o de Starnone. 

 

A contribuição de Elena Ferrante

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Ferrante também escreveu para crianças (Reprodução/Divulgação)

A pressa em definir essa ou aquela característica na obra de Elena Ferrante parece, no fundo, uma reação ao espanto provocado pelo diferente. Porque um livro que foca a vida de mulheres comuns é mesmo diferente. A maior parte do que se produziu em literatura, nos últimos séculos, versa sobre homens, grandes ou pequenos, corretos, sensíveis ou canalhas. Grandes clássicos como Anna Karenina ou Madame Bovary parecem exceções a confirmar a regra: sim, eles narram vicissitudes da vida de mulheres, mas não são mulheres comuns, com as de Elena Ferrante, e sim aristocratas ou burguesas entediadas – alguns diriam frívolas, não sem certo machismo. E é, talvez, esta a maior contribuição dada por Elena Ferrante, seja ela quem for: trazer a vida de mulheres ordinárias à cena.

A afirmação parece mais verdadeira quando feita sobre a Série Napolitana, conjunto de livros de narrativa tradicional e fraseado antibarroco. Em uma entrevista concedida por e-mail antes de ter a sua suposta identidade revelada, Elena Ferrante assumiu ter perseguido, enquanto escrevia a tetralogia, um texto simples “sob o qual fervesse uma espécie de magma”, como a do Vesúvio que desperta na última parte da saga.

Essa simplicidade é patente e também coerente com a história de Elena e Lila: Lenu tem inveja da forma como Lila escreve, quase como se fala, e, ela não esconde isso, passa a vida tentando se equiparar à amiga.

De fato, quando se leem os livros anteriores — iniciada em 2011, a Série Napolitana vem depois de três romances curtos – de Ferrante, percebe-se que ela pode mais, em termos estéticos, do que apresenta na tetralogia. O primeiro livro da autora, lançado este ano no Brasil como Um Amor Incômodo (Intrínseca), saiu na Itália em 1992. Nele, Ferrante explora o difícil relacionamento de uma filha com a mãe, encontrada morta em Nápoles – a cidade é um dos elementos recorrentes do universo que a escritora vem construindo com seus livros. A nem sempre suave relação entre mãe e filho e os sentimentos ambíguos que a maternidade pode trazer são temas também de Dias de Abandono (Biblioteca Azul, Globo), lançado em 2002 e no ano passado no Brasil, e A Filha Perdida, publicado em 2006 na Itália e aqui em 2016, pela Intrínseca. A editora carioca ainda lançou Uma Noite na Praia, livro infantil em que outro elemento de peso do universo de Elena Ferrante, a boneca, é a protagonista.

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Dos três romances curtos anteriores à tetralogia, Dias de Abandono, em que uma mulher é deixada pelo marido já na primeira página e precisa reconfigurar a vida, sem qualquer apoio, ao lado dos dois filhos pequenos, é o mais impressionante. Olga, a personagem, passa por um luto em que ela mesma sucumbe para se desfazer do que foi ao longo de um casamento que já não existe e que deixa de orientá-la. As páginas em que ela se desmonta psiquicamente são prova do virtuosismo de que Elena Ferrante é capaz. Uma aula sobre como entrar na cabeça de uma pessoa – e não apenas de uma mulher, esse bicho tão estranho.

“Mas meu deus se alguém puxa de um lado eu não posso ser puxada do outro, o que está daquele lado não está deste. Otto de fato, ofegante, carregava-me rapidamente conectando um lance a outro, enquanto tentava detê-lo, não queria correr, se corresse me quebraria por inteiro, cada degrau deixado para trás desfazia-se imediatamente até na memória, e o corrimão, a parede amarelinha corriam-me pelos lados, fluidos, como uma cascata. Via somente as rampas com seus segmentos nítidos, pelas costas sentia uma tira gasosa, eu era um cometa. Ah que dia horrível, quente demais já às sete da manhã, nenhum carro estacionado exceto o de Carrano e o meu. Talvez eu estivesse muito cansada para segurar o mundo dentro da ordem habitual.  Eu não deveria ter saído. O que é que eu tinha feito antes? Coloquei a cafeteira no fogo? Tinha pó, tinha água? Eu tinha fechado bem para que não explodisse? E o leite para a menina? Eu cumpri estas ações ou só me propus a fazê-las? Abrir a geladeira, tirar a caixa de leite, fechar a geladeira, encher a panelinha, não deixar a caixa de leite sobre a mesa, recolocá-la na geladeira, acender o gás, colocar a panelinha no fogo. Eu teria feito corretamente todas estas operações?

Otto me puxou pela avenida, sob o túnel repleto de pichações obscenas. O parque estava deserto, o rio parecia um plástico azulzinho, as colinas do outro lado do rio eram de um verde aguado, nenhum barulho de tráfego, ouvia-se somente o canto dos pássaros. Se eu houvesse deixado o café no fogo, o leite, tudo teria queimado. O leite, fervendo, teria vazado da pequena janela, teria apagado a chama e o gás, propagado por toda a casa. Ainda a obsessão do gás. Eu não havia aberto as janelas. Ou o fiz mecanicamente, sem pensar? Os gestos habituais acontecem na mente mesmo quando não acontecem. Ou você os cumpre de verdade, mesmo quando a cabeça, por hábito, já não os registra mais. Listava as possibilidades, desatenta. Teria sido melhor me trancar no banheiro, a barriga estava tensa, pontadas agudas. O sol desenhava minuciosamente as folhas das árvores, até as agulhas dos pinheiros, um trabalho maníaco de luz, conseguia contá-los um a um. Não, eu não tinha colocado o café nem o leite no fogo. Tinha certeza. Preservar esta certeza. Bonzinho, Otto.

(…) O cão me obrigou a correr atrás dele. (…) Quando foi que eu perdi aquela força e teimosia da energia animal, talvez na adolescência. Agora estava num processo de volta ao selvagem, olhei meus tornozelos, minhas axilas, desde quando eu não me depilava, desde quando eu não me raspava? Eu, que até quatro meses atrás era só ambrosia e néctar. No momento em que me apaixonei por Mario, comecei a temer que se enojasse de mim. Lavar o corpo, desodorizá-lo, apagar todos os vestígios desagradáveis da fisiologia. Levitar. Queria sair do chão. Queria que me visse suspensa em equilíbrio, elevada, como acontece com as coisas integralmente boas. Eu não saía do banheiro até que não desaparecesse o mau cheiro, abria a torneira para que não ouvisse o barulho da urina. Esfregava-me, aparava, lavava os cabelos a cada dois dias. Pensava a beleza como um esforço constante de apagamento da corporalidade. Queria que amasse meu corpo esquecendo o sabor que carregam os corpos. A beleza, eu pensava ansiosamente, é esse esquecimento. Ou talvez não. Talvez tenha sido eu que tenha acreditado que o amor dele precisasse daquela minha obsessão.

(…)

Levantei-me choramingando de vergonha e dor de barriga, a bexiga cheia, eu não aguentava mais. Andei em zigue-zague, apertando as chaves de casa, batendo a coleira no chão. Não, não sabia nada sobre as árvores. Um álamo? Um cedro do Líbano? Um pinheiro de Aleppo? Qual era a diferença entre uma acácia e uma rubiácea? Os enganos das palavras, tudo um engano, talvez a terra prometida não tenha mais palavras para embelezar os fatos. Sorrindo de escárnio – um desprezo por mim mesma –, levantei a camisola, agachei, mijei e caguei atrás de um tronco. Estava cansada, cansada, cansada.

Disse-o alto, mas as vozes morrem logo, parecem vivas no fundo da garganta e, ao contrário, se articuladas, já são sons apagados. Ouvi que Ilaria me chamava de muito longe. Suas palavras me chegavam fracas.

‘Mamãe, volta, mamãe’.”

 

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