‘Laços’, de Domenico Starnone: o inferno somos nós
Em seu primeiro romance lançado no país, o italiano Domenico Starnone examina as desastrosas consequências de uma traição e de uma reconciliação forçada
“Tanto eu quanto ela conhecemos a arte da reticência. Da crise de tantos anos atrás ambos aprendemos que, para viver juntos, é preciso dizer bem menos do que calamos. Funcionou. O que Vanda diz ou faz é quase sempre o sinal daquilo que esconde. E minha concordância contínua encobre que há décadas não temos nenhum tipo, absolutamente nada, de sentimento em comum.” É assim que Aldo, o protagonista de Laços, romance de estreia do italiano Domenico Starnone no Brasil, resume com precisão o estranhamento que se instalou entre ele e a mulher, Vanda, ao longo de um casamento de décadas.
Há muitas maneiras de ler Laços. Apontado por um software de análise de textos como o candidato mais promissor a Elena Ferrante, o pseudônimo que se tornou um arraso de venda e de crítica, e pela investigação de um jornalista italiano como o homem casado com a tradutora a quem caberiam os dividendos da autora, Laços poderia ser encarado como o outro lado de — ou uma resposta a, como já apontaram críticos estrangeiros — Dias de Abandono, talvez o melhor romance de Ferrante.
De fato, Laços parece mostrar o que Dias de Abandono ignora. O romance de Ferrante, lançado em 2002 — Laços é de 2014 –, acompanha Olga desde o momento em que é deixada pelo marido por uma garota mais nova até o completo desmanche psíquico que sofre páginas depois. De Mario, o evadido, pouco ou nada se lê. Laços também trata de uma traição, mas principalmente do ponto de vista do marido traidor, Aldo, que saiu de casa atrás de uma novinha nos anos 1970, com a alegação, baseada em preceitos da revolução comportamental, de que a verdadeira traição seria negar o desejo. Aldo retorna, mas a relação, apesar das muitas rachaduras, jamais permitiu ao casal voltar a tomar ar. A respirar. Pelo contrário: a casa de Aldo e Vanda, que eles encontrarão revirada depois de uma viagem à praia, é um ambiente asfixiante de opressão e de tensão, ao qual o leitor não fica imune. “Ficar pode ser mais violento do que partir”, como diz Starnone em entrevista a VEJA.
Além de um possível diálogo literário do escritor, um dos maiores da Itália hoje, com a esposa, Anita Raja, Laços carrega características textuais que fazem de Starnone o suspeito maior por trás de Elena Ferrante. Como o pendor pela temática dos relacionamentos, o que de mais trivial e crucial há na vida. “Nenhuma vida está realmente sob controle. Às vezes, uma palavra impensada, um gesto mecânico, é suficiente para iniciar um processo destrutivo”, diz Starnone. Também um certo traço feminista. Sobre o fato de, no livro, as personagens femininas parecerem mais inteligentes que as masculinas, Starnone comenta: “Eu simplesmente olho em volta. As coisas estão cada vez mais assim”. Aqui, pode-se arrolar também os capítulos curtos e sem título (em Laços, eles são antecedidos por números), a narrativa linear e o léxico simples.
Questionar Starnone a respeito da suspeita, porém, é tirá-lo do sério. “Isso é estupidez. Não sou Elena Ferrante.”
Mas Laços, que aliás é ótimo e nada deve a Dias de Abandono, poderia ser também uma resposta mais ampla a toda uma tradição literária que tem por mote a traição da mulher, espécie de semente do caos em clássicos como Anna Karenina, de Tolstoi, e Madame Bovary, de Flaubert. Aqui, é o adultério masculino, assumido como natural em tantos séculos e histórias, o grande detonador da trama, dos problemas e das pessoas — a mulher, a primeira a assumir a narração do livro, por meio de cartas, e os filhos, cujo ponto de vista, e condição errática na vida, conhecemos ao fim do livro.
Pode-se ainda ler Laços, como sugere a britânica Jhumpa Lahiri no excelente prefácio feito para a edição em inglês do romance e também traduzido pela Todavia, como um texto tributário do mito de Pandora. Quando se põe a arrumar a casa devassada, Aldo reencontra e reabre caixas e envelopes dos quais saltam segredos sufocados pela família. A sugestão agrada a Starnone. “Cada ordem é sempre uma tampa sobre a desordem. Se a tampa sai, tudo pode explodir.”
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