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Sexo ruim de ‘Cat Person’ é de dar pena. De todo mundo

Perfis forjados pela internet, uma garota que não sabe dizer não na hora H e um homem que parece igualmente constrangido a transar provocam dó de tão reais

Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 25 dez 2017, 10h21 - Publicado em 24 dez 2017, 07h19

A língua alemã tem palavras incríveis para definir o mundo. São conceitos que podem condensar, e também sugerir, linhas inteiras de pensamento. É o caso de zeitgeist, literalmente espírito (geist) do tempo (zeit), termo que diz respeito à mentalidade, à cultura, aos temas e debates que marcam uma época. No cenário polarizado em que se vive hoje, com a ascensão de figuras políticas obtusas como Donald Trump e Jair Bolsonaro, com o acirramento das tensões entre os diferentes – direita e esquerda, homens e mulheres, brancos e negros, gays e não-gays – e com a imensa incompreensão do mundo resultante desse campo dinâmico de conflitos, um quadro em ebulição no qual nada se consolida, tudo é desafiado o tempo todo, a palavra zeitgeist voltou a ser empregada com alta frequência. É um emprego vicário: zeitgeist é um curinga para o vazio da explicação que ainda não veio. É por isso também um veículo, um termo que conecta o profundo desentendimento de tudo a possíveis respostas. Ou candidatas a.

Não à toa, o termo foi usado diversas vezes para comentar a repercussão do conto Cat Person, publicado há três semanas pela revista The New Yorker. O texto é de uma escritora até então desconhecida: Kristen Roupenian, que nunca editou um livro, tinha duzentos seguidores no Twitter quando seu conto saiu na New Yorker, em 5 de dezembro. Hoje, tem oito mil e 1 milhão de dólares na conta, graças ao contrato firmado com a editora Jonathan Cape para o lançamento de seu primeiro título de contos, no Brasil adquirido pela Companhia das Letras, que já comprou também um romance ainda em desenvolvimento. Apesar do anonimato da mãe, Cat Person viralizou como hit de Anitta e se tornou tópico de discussão em redes sociais, sites, jornais e revistas. É o zeitgeist, apontou um punhado de críticos e comentaristas. Publicado em um momento em que eclodem denúncias em massa de vítimas de assédio sexual, a maioria delas mulheres, a história de uma garota que faz sexo contra a vontade não por abuso, mas por não saber como dizer não na hora H, caiu como pólvora fresca na fogueira detonada pela reportagem do jornal The New York Times e da mesma New Yorker sobre os abusos do produtor de cinema americano Harvey Weinstein.

Cat Person é narrado em terceira pessoa, mas segue o ponto de vista de Margot, uma estudante de 20 anos que trabalha na bombonière de um cinema de arte. Ali, ela conhece Robert, um homem de 34 de quem pouco se sabe, nem Margot nem o leitor, elipse proposital criada por Kristen para que o leitor enxergue o homem com os olhos da menina. Antes de um filme, ele compra pipocas e uma caixa de doces enjoativos, uma combinação que a surpreende. Robert não é lindo – ela não daria em cima do sujeito em uma balada, mas poderia dar bola para ele no meio de uma aula chata. Dias depois, reaparece para outra sessão e dá uma nova passada pela bombonière. Ela o reconhece, eles fazem piada sobre a caixa de doces, que ele pede de novo, e trocam telefones. A partir daí, passam a se falar por um aplicativo de mensagens, onde cada um constrói, por semanas, um perfil que impressione o outro.

Os estágios iniciais de uma relação, se já beiram o ridículo no mundo offline, em um cenário virtual se tornam patéticos, coroados por jogos de palavras, piadinhas eloquentes e emojis, o que Kristen trabalha de maneira sucinta, mas precisa, sem temperos exagerados que estraguem o prato. É um dos trunfos do conto, que, na linguagem, é bastante simples – daquela simplicidade que custa a ser alcançada.

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Perfis burilados por mensagens, Margot e Robert marcam de se encontrar. E tudo, desde a escolha do filme, um broxante longa sobre o Holocausto, aponta para o desastre. Pela falta de intimidade com Robert, algo que uma relação virtual não foi capaz de construir apesar das várias semanas de contato, Margot passa a noite tentando adivinhar o que se passa com ele, tentando decifrar sua personalidade e inferindo pensamentos e motivos sem nunca compartilhar com o próprio – apenas o leitor, que está sempre dentro da cabeça da menina, tem acesso à sua imaginação. O auge do conto, motor das críticas e textões na internet, é o desfecho da noite. Depois do filme, os dois vão a um bar, quando Robert descobre a diferença de idade entre eles, mas incentiva Margot a beber mesmo assim, e de lá ela sugere que sigam para um lugar reservado. Ele, que afirma ter gatos em casa, daí o nome do conto, a princípio não parece animado com a proposta. Apesar disso, os dois acabam na casa dele.

E é ali, na casa de Robert, quando ele está se despindo para transar, que Margot se dá conta de que não o deseja mais. Mas ela tem medo de que ele a veja como uma menina mimada ou volúvel, e sente preguiça do enorme esforço que teria de fazer para se colocar com tato e sair da situação sem magoá-lo ou enervá-lo, e deixa rolar. O que se segue não é traumático, mas uma experiência desagradável. Ela precisa segurar o nojo, um tanto de repulsa e a vontade de rir até o final, quando ele corre para o banheiro para se livrar da camisinha e a convida para ver um filme no sofá. O conto não se encerra aí – não há tanto spoiler aqui para estragar a leitura.

Cat Person não parece ter sido pensado para atrair parte da atenção dirigida, no momento, para os escândalos de assédio e abuso sexual – até porque é difícil prever o que pode ou não pegar, ainda mais quando se trata de literatura. Em entrevistas, Kristen contou ter escrito o texto baseado em experiências pessoais: depois de uma noitada decepcionante e com a contribuição de “notas emocionais” amealhadas em outros encontros frustrantes, como ela mesma declarou em entrevista ao jornal The New York Times. Uma história, portanto, que se desenvolveu na cabeça da escritora por algum tempo.

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Moralidades do século XXI

Mas Kristen, que se formou em Inglês e Psicologia em Columbia, já escreveu sobre violência e gênero na obra de David Foster Wallace e se voluntariou em um trabalho de Conscientização e Prevenção Comunitária no Centro de Crises de Estupro em Boston (Boston Area Rape Crisis Center), nas entrevistas também se mostra preocupada com a questão sexual, um dos grandes debates de 2017. Depois da explosão do conto, ela usou o Twitter para publicar uma única mensagem. Nela, agradece pela reverberação de Cat Person e diz não saber “como fazer justiça” a toda a discussão em torno do conto, antes de divulgar um texto da escritora feminista Ella Dawson que problematiza o “sexo ruim”, aquele enfrentado por Margot.

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“Por ‘sexo ruim’, quero dizer o sexo que não queremos ter, mas com o qual consentimos no final das contas”, diz Ella, autora de textos sobre sexo ou eróticos. “Deixe-me ser clara: sexo ruim não é estupro. Não é ser forçada a fazer algo contra a vontade. O sexo ruim nem mesmo é necessariamente coercivo. Estou falando sobre uma relação sexual que você não quer, mas que no momento parece mais fácil ter logo do que tentar se livrar dela.”

Ella Dawson conta ter tido alguns desencontros desses na vida – quem nunca? – até, por volta dos 20 anos, a idade de Margot, fazer um ótimo sexo casual com um garoto que ela conheceu em uma festa. O encontro elevou seus padrões de uma boa transa, e ela passou a só se deitar com alguém quando está com aquela vontade. A escritora conclui o texto desejando esse tipo de filtro a todas as mulheres – e a todos os homens, complementa – e procurando refutar algum moralismo que possa ser imputado a ela. “Não ensinem as crianças a esperar até o casamento para ter sexo, ensinem a esperar até realmente terem desejo.”

A opinião de Ella Dawson é pessoal, parece tolo e ao mesmo tempo importante lembrar, não reflete a opinião de todas as feministas e muito menos a de todas as mulheres. Ainda assim, é interessante se debruçar sobre ela. De um lado, o artigo pode refletir – mas é arriscado cravar isso – uma postura feminina, culturalmente fabricada através de séculos, diante do sexo. Tudo bem, o amor já não é visto como um elemento imprescindível de uma boa relação, mas ainda há uma condição para a relação sexual, no caso a qualidade. E quantidade versus qualidade parece uma dicotomia que há tempos separa homens e mulheres, tanto que Robert, embora não pareça a fim de transar quando Margot faz a proposta no carro, de maneira sutil, vai lá e comparece.

De outro lado, a conclusão de Ella pode indicar – mas, novamente, esta é uma hipótese a ser testada, e o acerto de Cat Person está em levantar questões, sem fechar – uma contraproposta aos casos de assédio ou àquilo que se poderia chamar, de todo modo, de sexo impositivo. É também por uma imposição, social, cultural e das próprias circunstâncias de um primeiro encontro, que Margot e Robert vão às vias de fato. Ella Dawson pode ainda estar propondo uma reação à banalização do sexo, que seria fruto da revolução de costumes dos anos 1960 e 70 e que reduziria a qualidade da relação. A contraproposta soa paradoxal em tempos de aplicativos como Tinder e do forte movimento de liberação e empoderamento de gays, mulheres e transgêneros, que vêm ganhando espaço na sociedade. Mas, se analisada a fundo, vê-se que na verdade ela é parte desse mesmo cenário.

O surgimento de uma moralidade que congregue liberdade e libertação, respeito e consentimento e também prazer, apesar do cerceamento do politicamente correto, é uma das possibilidades indicadas pelo debate formado em torno do conto de Kristen Roupenian. É claro (ou ao menos espera-se) que ninguém vai assinar um contrato antes de transar, mas novas formas de comunicação, de interação e de relação social podem estar despontando ou querendo despontar neste momento, em meio às discussões sobre assédio e sobre Cat Person.

 

Debate dilatado

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Ainda que não tenha sido feito com a intenção deliberada de surfar no tema do momento, Cat Person encontrou um encaixe perfeito na discussão atual e atingiu uma performance inédita para um conto, gênero preterido por leitores e editores em prol do romance. O conto, aliás, faz mais do que achar seu lugar no debate: ele o amplia. Afinal, como diz Ella Dawson, sexo ruim não é abuso nem assédio.

O alargamento do tema revela um outro traço do confuso cenário atual. Uma certa complexificação do sexo que, para o bem e para o mal, traz um traço puritano, típico da cultura dos Estados Unidos, país que é berço do politicamente correto.

Antes de tudo, é preciso lembrar que Margot e Robert estão saindo pela primeira vez. Esta talvez seja a primeira camada do conto, que contém uma porção, daí possibilitar uma série de leituras e discussões. Em encontros casuais ou potenciais pontapés de relacionamento, há de fato uma dificuldade de se dizer as coisas, uma dificuldade que é inerente às circunstâncias, e que passa também por narcisismo e empatia, como afirmou a autora à New Yorker – além do conto, a revista publicou uma entrevista com Kristen Roupenian. Meninas como Margot têm medo de parecerem loucas ou vadias se desistirem do sexo na última hora, e pensam também no que o outro pode sentir. Uma equação que não se fecha nunca, já que a comunicação, nessas situações, é difícil à beça.

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Margot, vale lembrar, não está só em seu constrangimento. Robert não parece a fim de transar no início e também não se expõe a ela. Nem mesmo para o leitor: o que ele pensa não emerge no conto, ausência que até ensejou versões de Cat Person escritas pelo ponto de vista dele. É possível que, como muitos homens, ele se sinta forçado a dizer sim. Em culturas machistas (e heteronormativas, completaria alguém), como se sabe, um homem que recusa o sexo é suspeito de ser gay. O peso do estereótipo masculino também é enorme: homem sustenta a casa, homem não foge a uma briga, homem não nega fogo, homem não chora.

Em uma história em que um jogo tenso é orquestrado por forças diversas, da cultura machista às inibições de um primeiro encontro, passando pelas altas expectativas geradas pelos perfis talhados via internet, todos os personagens causam pena. Cat Person, com todo o seu realismo e verossimilhança, dá muita, muita pena de Margot e de Robert. E de todos nós, usuários cada vez mais adictos da internet e cada vez mais perdidos em um mundo incompreensível.

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