A China é, de longe, o maior parceiro comercial do Brasil. E qualquer análise sobre a relação com um parceiro deve considerar aspectos estratégicos. Nas declarações de personalidades ligadas ao governo brasileiro, contudo, tal cuidado não foi levado em conta e gerou atritos desnecessários com o país.
A eclosão da pandemia de Covid-19 alterou tudo. E parece que nem os chineses nem nós percebemos todas as mudanças. Inclusive, e sobretudo, o papel deles como potência mundial. Se antes era inquestionável que a China assumiria liderança em nível global, hoje tal hipótese é muito discutível.
Independentemente de provar que o novo coronavírus foi produzido, ou não, em um laboratório chinês acidentalmente, ou que veio de seus mercados de baixas condições sanitárias, o comportamento da China no desenrolar da crise já abalou o conceito do país cuja imagem de opacidade não era positiva.
Como na política, nas relações internacionais as versões são mais importantes que os fatos. A percepção que ficou da China no episódio foi de ausência de empatia com o resto do planeta, por não alardear de imediato os riscos que todos corriam, e de falta de transparência para enfrentar o problema.
Além disso, a China encobriu o real número de contaminados e mortos. A ponto de, recentemente, a quantidade de óbitos em Wuhan, onde a doença foi detectada pela primeira vez, ter sido publicamente ajustada para cima em mais de 50%. Outro fato é que há a suspeita de que a epidemia em Wuhan já estaria em curso ao longo de dezembro.
“A percepção que ficou da China na crise da Covid-19 foi de ausência de empatia com o resto do planeta”
Especula-se, ainda, que o país teria usado potenciais ajudas humanitárias para impulsionar o avanço do gigante chinês Huawei, multinacional de equipamentos para redes e telecomunicações, tendo em vista futuras operações de 5G no planeta. Tal movimento, se confirmado, mostra uma inacreditável falta de senso de humanidade.
Na prática, o software político da China não funciona bem para desafios mundiais. É uma potência militar e econômica, mas sem soft power e uma leitura adequada das circunstâncias globais para saber construí-lo.
Por isso esta crise remete ao acidente nuclear de Chernobyl, ocorrido em abril de 1986, quando se revelou a incompatibilidade da União Soviética com o resto do mundo de então. Quando o reator 4 da usina nuclear explodiu, liberando radiação equivalente a 500 bombas atômicas, o governo soviético tentou abafar o episódio.
A forma escolhida pelos chineses para combater a disseminação do novo coronavírus, no fim das contas, prejudicou a própria China. As consequências poderão ser vistas em breve em decisões governamentais de países importantes — no que toca à compra de equipamentos, em especial na questão do 5G, e a pedidos de compensações e condenações públicas.
A solução para o problema de imagem da China reside na recuperação da credibilidade de suas iniciativas, tanto comerciais quanto humanitárias. Credibilidade que se constrói com a agregação de valores como empatia, solidariedade e transparência.
Ao Brasil não interessa o fracasso da China. Pelo contrário, a retomada do crescimento em cada país e a reativação do comércio internacional são cruciais para nós.
Mas a China terá de se reinventar e dar valor a atitudes como a autocrítica, o reconhecimento dos erros cometidos e a busca sincera por maior transparência.
Publicado em VEJA de 29 de abril de 2020, edição nº 2684