O governo Bolsonaro, por suas características, reforçou uma tendência iniciada no segundo mandato de Dilma Rousseff: a transformação do chamado “presidencialismo de coalizão”. Esse processo continua, embora ainda não seja claramente percebido.
Até 2015 todas as emendas orçamentárias parlamentares possuíam caráter discricionário, ou seja, dependiam de autorização do governo federal para liberação. Tal sistemática estimulava as negociações com o Executivo em troca de apoio.
Em 2019, já no governo Bolsonaro, o Legislativo estabeleceu, com a Emenda Constitucional nº 100/19, que as emendas de bancadas estaduais também deveriam ser obrigatoriamente pagas. No mesmo ano, a Emenda Constitucional nº 105/19 autorizou repasses diretos a estados, municípios e ao Distrito Federal de recursos de emendas individuais impositivas, sem a necessidade de convênios com o governo federal.
Por fim, a partir da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2020, a obrigatoriedade de execução passou a abranger tanto as emendas do relator-geral da Lei Orçamentária Anual quanto as das comissões permanentes da Câmara e do Senado. As emendas do relator-geral do Orçamento têm até mesmo prioridade de empenho, com prazo máximo de três meses.
“O governo deve ser mais proativo na atração de apoios, pois o poder é compartilhado como nunca no país”
Tais mudanças alteraram o desequilíbrio de forças entre o Poder Executivo e o Congresso Nacional. E por que digo desequilíbrio? Pelo fato de que o Executivo sempre teve uma soma maior de poderes do que as esferas legislativa e judiciária, situação que só tem sido modificada ao longo das últimas décadas.
A questão orçamentária tirou do Executivo o poder de barganhar a execução de emendas em troca de apoio. Agora, governo, independentes e oposição têm as suas emendas executadas por força constitucional.
Qual a consequência disso? Parlamentares podem votar contra o governo sem temer que seus recursos orçamentários sejam bloqueados. Assim, o governo deve ser mais proativo na atração de apoio político, visto que o poder está sendo compartilhado como nunca antes no Brasil.
Ainda em 2019, Jair Bolsonaro se tornou o presidente com o maior número de derrotas porcentuais em vetos no Congresso. O modelo político adotado pelo governo não lhe permitia apoio consistente no Congresso.
Já no ano seguinte, Bolsonaro tratou de construir uma base política. Essa base ainda se encontra em formação, mesmo assim a autonomia dos parlamentares já é muito maior. Sem uma base sólida no Congresso, o governo poderá ser contrariado.
Fato é que estamos caminhando para um regime semipresidencialista numa época em que o Judiciário ganha força e o federalismo também. A pandemia de Covid-19 mostrou uma federação em funcionamento.
O presidente da República está deixando de ser a “Sua Majestade” descrita por Ernest Hambloch. Embora ainda não estejam claras e não sejam percebidas pela opinião pública, as transformações já produzem efeitos significativos na política nacional.
Publicado em VEJA de 24 de março de 2021, edição nº 2730