Dia 13 de Dezembro foi um aniversário ao contrário. Um desaniversário, se essa palavra existir. Porque comemoramos só coisas boas. Desgraças, não. E, agora, temos 50 anos do AI 5. Mais um ato, dentro de vasto conjunto normativo destinado a institucionalizar o Golpe de 1964. Vamos aos números. Atos Institucionais foram 17 (último deles em 14/10/69 – autorizando transferir, para a reserva, militares “que hajam tentado contra a coesão das Formas Armadas”). Alguns mais relevantes. Como o AI 1 (9/04/64) – que, entre outras restrições, suspendeu as garantias do judiciário. E criou o “Comando Supremo da Revolução” (Revolução, assim auto-definiu-se o golpe), que seria a “única instituição autorizada a representar o povo brasileiro”. Foram 9, os Atos desse Comando Supremo. Primeiro deles, em 10/04/64, cassando Celso Furtado, Darci Ribeiro, Francisco Julião, Leonel Brizola, Luiz Carlos Prestes, Jânio Quadros, João Goulart, Josué de Castro, Miguel Arraes, Samuel Wainer e, mais, 90 brasileiros.
Depois, com o AI 2 (27/10/65), foram indicados os “valores revolucionários”. Com o novo Presidente passando, solitariamente, a ter poder para “editar Atos Institucionais, Atos Complementares (à Constituição) e Leis”. Com destaque, sobretudo e infelizmente, para o AI 5, com alentado conjunto de atos em flagrante violação à Constituição. Como a supressão do Habeas Corpus. Foi o mais agudo instrumento de arbítrio, durante o período de exceção. Um golpe dentro do golpe. Ficando excluídos de qualquer apreciação judicial, em todas as normas se repetiria, os atos praticados pelo novo governo.
Não parou por aí, essa normativa de exceção. Houve, mais, 27 Emendas à Constituição. 105 Atos Suplementares. E longa fila de Decretos Secretos (autorizados pelo Decreto 69.334/71). Entre 67 e 78, com base neles, tivemos 10.034 inquéritos penais contra agentes subversivos. Desses, com apenas 4% presos regularmente; 12%, com comunicação ao juízo fora do prazo legal; e 84% sem qualquer comunicação ao juízo. Três ministros do Supremo foram exonerados: Hermes Lima (Presidente), Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva. Elevando-se, o número de ministros, para 15 (só mais tarde voltando a ser 11). O golpe precisava de garantias contra surpresas do Judiciário.
Mas o AI5 não veio sozinho. No início de 1969 criou-se, oficiosamente, a Operação Bandeirantes – OBAN. Sob comando do II Exército. O ato informal de sua criação deu-se em 01/07/69. Com presenças do governador de São Paulo, Abreu Sodré; do prefeito da capital, Paulo Maluf; além de figuras proeminentes como Delfim Neto; o banqueiro Gustavo Vidigal; ou os empresários Henning Albert Boilesen, Luiz Macedo Quental e Paulo Sawaya. A OBAN foi responsável por boa parte dos 191 mortos, 210 desaparecidos e mais 33 desaparecidos cujos corpos conseguimos localizar, no curso dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade.
Vênia para dizer que a reiteração da corrupção, que então corria solta, preocupava o poder. Uma primeira Comissão Geral de Inquéritos – CGI foi instaurada em 27/04/64. Para apurar corrupção dos governos anteriores, eleitos pelo povo. Mas logo veio a Segunda CGI, em 31/12/68, especificamente para estabelecer limites à corrupção dentro da Revolução. Entre civis e militares. Os resultados modestos, nas apurações desta segunda CGI, levaram o major Waldyr Coelho, responsável pela OBAN, a propor, em 1970, uma OBAN Contra a Corrupção. O que desmoraliza a tese de que governos autoritários estão imunes à corrupção. Dela não se sabendo, basicamente, por conta da censura. Não é que não existisse corrupção. Havia, sim. Problema é só não se poder saber dela.
Importante lembrar desse passado. Não se trata de apenas criticar um passado que passou. Nem é voltar ao passado, para punir. Eu mesmo votei na Comissão, solitariamente, contra a revisão das Leis de Anistia (de 1979 e de 1985) – “pelas mesmas razões que, em 29/04/2010, levaram o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, e com fundamento em cláusulas pétreas da Constituição brasileira, a recusar, por larga margem (7 atos a 2), essa tese”. Razão pela qual me considero com autoridade para falar desse passado sem uma visão persecutória. Mas é preciso reter, na memória, tudo que aconteceu naqueles anos de chumbo. Para que não volte a acontecer. Nunca mais. Em nome, e em louvor, da democracia.
José Paulo Cavalcanti Filho. jp@jpc.com.br