Bolsonaro percebeu, enfim, que a insistência na radicalização acabaria por derrubá-lo e sossegou o facho: abandonou a “ala ideológica”, cedeu à “ala técnica”, demitiu Abraham Weintraub e o substituiu por Carlos Decotelli, dono de currículo estelar, avalizado pelo “primeiro-ministro” Walter Braga Netto.
Mas o currículo era vidro e se quebrou, e o quase-ministro caiu antes da posse. Não que a fraude seja estranha aos ministros de Bolsonaro: Damares e Salles mentiram sobre seus currículos, Marcelo Antônio foi denunciado por fraude eleitoral, Weintraub praticou autoplágio e escapou da quarentena nos EUA usando o passaporte oficial. Decotelli deu azar de ter sido pego na entrada.
O currículo do ex-futuro-ministro não é mais fantasioso, no entanto, do que a ideia de que exista de fato uma “ala técnica” no governo. Afinal, o que há de técnico em uma Agência Brasileira de Inteligência — chefiada por Alexandre Ramagem, considerado tão competente que Bolsonaro o nomeou diretor-geral da Polícia Federal (caiu mais rápido do que Decotelli) — incapaz de identificar algo trivial como um currículo forjado? E vale lembrar que a agência é subordinada ao técnico general Augusto Heleno.
A tal ala técnica nem precisaria da Abin para saber que o currículo do candidato não recomendava sua nomeação: bastava ler o que os bolsonaristas chamam de “extrema imprensa” para saber que durante a gestão de Decotelli no FNDE foi aprovada uma licitação fraudulenta, ainda não esclarecida, de 3 bilhões de reais. Aliás, se a ala técnica tivesse se dado ao trabalho de bater cinco minutos de papo com Decotelli — que integra a equipe de Bolsonaro desde antes da posse —, teria percebido o que todos os brasileiros perceberam ao vê-lo na TV: ele é o rei do lero-lero.
“Todos perceberam ao ver na TV o ministro que caiu antes da posse: Carlos Decotelli é o rei do lero-lero”
O desempenho da ala técnica em outros departamentos não é diferente. Foi ela que indicou o técnico general Eduardo Pazuello para a Saúde, onde mais de vinte militares técnicos (mas não em medicina) não formulam política de saúde, prescrevem medicamentos perigosos sem respaldo técnico, manipulam dados técnicos e fogem de entrevistas.
Paulo Guedes não é militar, mas é parte da ala técnica. Sem proposta para lidar com a crise — e sem vestígio de sensibilidade social —, Guedes torpedeia o auxílio emergencial, recomenda Weintraub para o Banco Mundial e repete que o Brasil “vai surpreender” o mundo. Como se a pandemia fora de controle, um desequilibrado no Bird, um mitômano no MEC e metade dos brasileiros sem trabalho não causassem assombro bastante.
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Clique e AssineAté da política a ala técnica cuida: é o general Ramos (que, para supremo alívio do Exército, vai para a reserva) quem entrega orçamentos bilionários ao Centrão. “Se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão”, cantou certa vez o general Heleno, mas isso não incomoda Ramos, tão à vontade no papel de técnico da velha política que tem um celular só para isso — parlamentares bolsonaristas, que não têm o número, apelidaram o general de “disque-Centrão”.
Com ala técnica assim, quem precisa de ala ideológica?
Publicado em VEJA de 8 de julho de 2020, edição nº 2694