Alegria de brasileiro dura pouco: o país ainda comemorava a decisão do STF de proibir o orçamento secreto quando veio a notícia de que a Câmara havia dobrado a aposta e aprovado a PEC dos Precatórios (ou do Calote, ou dos Predatórios) em segundo turno.
A PEC oficializa o calote: o governo deve, sabe que deve, a Justiça manda pagar, mas, sabe como é, a conta é meio salgada, então o governo avisa que não vai dar para pagar tudo, não. Paga uma parte agora e o resto depois. Se ou quando pagará o resto, não se sabe: ele será acrescido de juros e se somará aos precatórios que fatalmente virão no futuro, de modo que a dívida tende a crescer continuamente (os precatórios de baixa prioridade ficarão para as calendas gregas, e dane-se o credor). Bolsonaro será o presidente que acabou com a bola de neve da Previdência, mas criou a bola de neve dos precatórios.
A PEC legaliza a violação de contratos, gera insegurança jurídica, quebra o teto de gastos e cria um precedente perigoso: se o governo rasga a lei para os precatórios, por que não a rasgará para outras coisas? A PEC também abre espaço para o governo comprar votos de parlamentares em 2022 — o orçamento secreto foi proibido, mas vem aí uma versão 2.0 —, cria um fundo eleitoral de 5 bilhões de reais, até subsídio a combustível fóssil dá (pareceria um contrassenso se alguém acreditasse nas promessas do governo na COP26).
Para coroar, é tudo feito em nome dos pobres. Na verdade, é o contrário: Bolsonaro extinguiu o Bolsa Família e o novo Auxílio Brasil só vale para o ano eleitoral. Depois da eleição, danem-se os pobres.
“Bolsonaro será o presidente que acabou com a bola de neve da Previdência e criou a dos precatórios”
Com a PEC, Bolsonaro mantém o apoio do Centrão e consegue um programa social-eleitoral para chamar de seu; os deputados (que já levaram quase 1 bilhão de reais em emendas) poderão continuar a vender votos no ano que vem e ganham um caminhão de dinheiro para a campanha eleitoral; e prefeitos no Brasil inteiro ganham o parcelamento de dívidas previdenciárias.
O preço desses regalos todo mundo conhece: dólar alto, inflação (“direto e na veia”, resumiu o economista Edmar Bacha), juro alto, crescimento baixo, descontrole financeiro, desemprego. Mas e o país? Ora, dane-se o país.
O país tem duas chances de impedir a danação. A primeira é no Senado, cujo presidente, Rodrigo Pacheco, sempre obsequioso com Bolsonaro, diz que não vê a PEC como algo “eleitoreiro, populista ou demagógico”. E promete votar rápido.
Outra chance está no Supremo. A PEC é obviamente inconstitucional, mas consta que alguns ministros teriam se mostrado sensíveis ao argumento da “governabilidade”: não seria a primeira vez que o tribunal abençoaria um ato inconstitucional por injunção política. Dado o escândalo que a emenda se tornou, talvez os ânimos tenham mudado. A ver.
Seja como for, uma coisa é certa: emendas no Orçamento são instrumentos de barganha ilegítima e oportunidades de corrupção há décadas, e assim será enquanto tivermos uma Constituição excessivamente detalhista; uma grande quantidade de partidos; um sistema tributário que concentra a arrecadação em poder do governo federal; e o voto não for distrital.
Até lá, o país continuará se danando.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2021, edição nº 2764