A escravidão moderna ganha forte retrato em ‘7 Prisioneiros’, da Netflix
No longa, diretor Alexandre Moratto confirma seu olhar afiado ao narrar história de um protagonista em crise moral
Três beijos e uma troca de olhares separam Mateus (Christian Malheiros) da mãe, uma senhora de mãos calejadas por anos de trabalho rural. A despedida marca o começo de uma nova fase: dali a cinco horas, o jovem, ao lado de outros três amigos, trocaria o interior pela agitação de São Paulo, na esperança de uma vida com carteira assinada e salário garantido no fim do mês. Mas não é isso o que aguarda os rapazes. Responsáveis pelo trabalho braçal em um ferro-velho, eles logo percebem que as condições na metrópole não lembram nem remotamente as prometidas. São amontoados em um dormitório imundo cercado por grades, têm refeições controladas e o novo chefe, Luca (Rodrigo Santoro), é evasivo sobre pagamentos e contratos. Confisca seus documentos e, quando se revoltam, também os celulares. Os salários foram suspensos em nome de uma dívida que não sabiam ter contraído, e cada tentativa de fuga subtrai mais do pouco que têm. O trabalho migrante se converte, assim, em uma perturbadora forma de escravidão contemporânea, da qual são cúmplices policiais, vizinhos e até a simpática atendente da padaria ao lado. Não há para onde correr ou a quem recorrer — e Mateus, o líder do grupo, estoicamente percebe qual pode ser a única saída dali: a obediência, e uma eventual cumplicidade.
Dessa forma se desenha a espinhosa rede de tráfico humano em 7 Prisioneiros (Brasil, 2021), segundo longa-metragem do brasileiro radicado nos Estados Unidos Alexandre Moratto, disponível na Netflix a partir de 11 de novembro. A produção, lançada no recente Festival de Veneza, ilumina uma realidade indigesta, mas incontornável — há 40 milhões de pessoas sujeitas à escravidão no mundo, segundo dados da ONU. É, contudo, no dilema moral de Mateus que a trama acha seu prumo e expõe uma reflexão mais ampla sobre a natureza humana. À medida que a cooperação lhe concede privilégios e regalias acima do restante dos encarcerados, Mateus percebe que mesmo o caviloso Luca — a quem Santoro encarna com arrepiante frieza — também é mera peça em uma pirâmide maior de exploração que flui nos subterrâneos de São Paulo. Ao tentar conquistar a confiança do patrão, Mateus trava uma luta com a própria consciência: estaria ascendendo para puxar os outros companheiros de cela consigo ou só garantindo a própria vida naquele beco sem saída? Enquanto ele mesmo não decide, tampouco o espectador saberia o que fazer. “O filme é sobre como o poder corrompe até os melhores de nós”, resumiu Moratto a VEJA.
É curioso que um retrato tão vívido da desigualdade nacional venha de um diretor filho de pai americano e mãe brasileira que estudou cinema nos Estados Unidos e mora lá atualmente. Mesmo no berço da indústria cinematográfica, Moratto, 33 anos, foi atraído pelos dilemas do Brasil, mostrados por ele na tela de modo quase documental. Sócrates (2018), seu longa de estreia, foi aclamado em festivais internacionais — a história de um jovem gay sem-teto bebe da experiência como diretor em uma ONG para adolescentes pobres. Já 7 Prisioneiros nasceu da angústia provocada por uma reportagem sobre escravidão moderna. Nos dois filmes, Moratto encontra na atuação de Malheiros a perfeita tradução de suas ideias. Diante do indizível, o ator se vale do silêncio e da hesitação para entrever quão solitária, e perversa, pode ser a busca por sobrevivência. Se a parceria em Sócrates se revelava promissora, aqui se firma com brutalidade tão incômoda quanto necessária.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2021, edição nº 2762
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