‘Scenes from a Marriage’, da HBO, recria o clássico de Ingmar Bergman
Na série, um casal em crise expõe, em diálogos lancinantes, as dores de uma união aparentemente feliz
Qual é o segredo de um casamento bem-sucedido? A pergunta da pesquisadora incomoda Jonathan (Oscar Isaac) e Mira (Jessica Chastain). “Qual sua definição para o termo sucesso?”, questiona o marido. Vivendo juntos há uma década, os dois ganharam o carimbo de vitoriosos ao cruzar a média de pouco mais de oito anos de duração dos matrimônios nos Estados Unidos. Ele, professor de filosofia, e ela, da área de tecnologia, aceitaram participar do estudo que investiga como as normas de gênero afetam uniões monogâmicas com inversão dos papéis tradicionais — no caso, a mulher é a principal provedora e o homem, o “dono de casa”. Sob a configuração modernosa, porém, há fios soltos que aos poucos — e depois violentamente — desvelam as fissuras dos protagonistas de Scenes from a Marriage, minissérie que chega no domingo 12, às 22h, à HBO e ao HBO Max.
O programa em cinco episódios é uma releitura de Cenas de um Casamento, série sobre os meandros da vida a dois criada em 1973 pelo sueco Ingmar Bergman (1918-2007). A ideia de refazer o clássico com a perspectiva de um casal contemporâneo foi levada por Daniel Bergman, produtor e um dos nove filhos do cineasta, ao israelense Hagai Levi (de Em Terapia). Levi teve dúvidas sobre como regravar uma obra tão consagrada, mas achou um caminho ao perceber a ligação inescapável do tema com sua vida pessoal. Recém-divorciado, o diretor e roteirista fez como o próprio Bergman — que, ao escrever a série, expiou os tormentos da conturbada relação com a atriz Liv Ullman, protagonista da versão original. A partir da experiência real, ele encara a mesma missão excruciante a que Bergman se propôs: a de sondar não só um casamento em declínio, mas a complexa teia de sentimentos, expectativas e obrigações que conecta um casal — às vezes, não rompida nem mesmo pelo divórcio.
Bergman não inventou, mas sua série inevitavelmente se impôs como padrão-ouro de um subgênero temático: a “ficção DR”, calcada em diálogos que reproduzem diante da câmera o velho (e nem tão) bom hábito de “discutir a relação”. Seria demais exigir de Levi uma condução tão brilhante quanto a do mestre sueco, mas é inegável que ele se move com desenvoltura numa trama em que o peso de cada palavra, os silêncios e expressões buscam traduzir as sutilezas da intimidade do casamento. As situações são um convite para o voyeurismo — quem não gosta, afinal, de espiar a infelicidade amorosa alheia? Explorado à exaustão por Woody Allen e Richard Linklater, seguidores aplicados de Bergman, o formato voltou a ganhar força recentemente em filmes como o brutal História de um Casamento (2019), com Scarlett Johansson e Adam Driver, o doce Malcolm & Marie (2021), estrelado por Zendaya e John David Washington, e a sensível série Normal People (2020). Em comum, todos provam que transpor as barreiras da incomunicabilidade numa relação é dureza — e quase sempre resulta em barracos cabeludos.
Na trama de Bergman, Marianne, personagem de Liv, é oprimida pelo marido infiel (vivido por Erland Josephson). Ela se reinventa após a separação — o que levou a série a ser acusada de aumentar o número de divórcios na Suécia nos anos 70. No remake, que se desdobra ao longo de cinco anos em Boston, os personagens ganham mais camadas, e toques de modernidade. O marido exibe fragilidade e resquícios da educação repressora de judeu ortodoxo. A esposa, imersa no trabalho, carrega a culpa de não ser uma mãe presente, e a repulsa pela estagnação: ao contrário de Jonathan, é Mira quem despreza a zona de conforto. Ela o trai — e ele é quem desabrocha em seguida. Os episódios começam de forma curiosa: nos bastidores, na era Covid-19, todos estão de máscara e a câmera segue os atores até a claquete bater. O recurso é um flerte com o clima teatral de Bergman — que, com orçamento ínfimo, fez a série em cenário minimalista. É também um lembrete de que nem tudo é o que parece na rotina do casal. A felicidade só dura até que a vida os separe.
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2021, edição nº 2755
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