Imaginem. Eu sou da época da máquina de escrever. Datilografava página por página. Tec, tec, tec. Já não era novinho quando surgiu o computador doméstico. Foi fantástico — os vizinhos não reclamavam mais quando eu escrevia à noite. Eu sei. A vida sem internet parece inacreditável hoje. Juro: já existiu um mundo sem internet e nem faz tanto tempo assim. Os primeiros celulares pareciam tijolos. Se caíssem no pé, podiam machucar. Durante a maior parte do tempo, eles nem davam linha. Hoje, viver sem um celular parece impossível.
A pandemia tornou a tecnologia mais obrigatória que nunca. Tenho de aprender aquilo que nunca pensei em saber. Reunião por Zoom, por exemplo. Ou Google Meet. São programas de videoconferência. É assim que se realizam as reuniões de trabalho atualmente. Fui fazer uma por Zoom. Tudo parecia muito simples. Enviaram um link, que acessei. Em um instante, eu estava cercado por autores e diretores. Vi o rostinho de todos eles. Mas de mim só apareciam as orelhas. Tentei erguer a cadeira. Estava quebrada, é obvio. Cadeiras sempre quebram nessas horas. Corri pegar quatro almofadas e me equilibrei precariamente. Meu rosto apareceu na tela. Verde. Um diretor disse para eu apagar a luz atrás de mim. Apaguei, voltei ao normal e fiquei no escuro como uma coruja. Foi somente a primeira reunião. Tornou-se normal.
“Este admirável mundo novo já se incorporou à rotina. As novidades de hoje serão passado amanhã”
Estou revendo meu inglês e francês, em aulas semanais por Zoom. Já tive sessão de terapia através de um programa médico, no qual o profissional armazena meus dados. Ainda me assusto com a inteligência artificial. Outro dia recebi dois anexos pelo meu Gmail. Respondi: “Obrigado pelos anexos”. Imediatamente, o computador reclamou: “Você esqueceu de adicionar os dois anexos”. Tive a impressão de que estava sendo espionado! Se quero enviar e-mail para alguém, a inteligência acrescenta dois ou três nomes, para quem já enviei mensagem antes. Se me distraio, vai um texto íntimo para a pessoa errada! Meu celular, de repente, liga para alguém. Às vezes, uma pessoa que não vejo há muito tempo. Tenho de explicar que foi erro, mas que bom voltar a se falar etc., etc.
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Clique e AssineHá peças de teatro apresentadas pelo Instagram. É uma outra linguagem! Todos os dias boto um aplicativo de meditação e relaxo, aprendendo a respirar, descansando… Já escolhi um aplicativo de ioga, para fazer pelo celular. Mas ainda estou ensaiando começar… E cada vez há mais um novo aplicativo para desvendar, uma plataforma para conhecer. Eu, que cheguei a ter aula de caligrafia com caneta tinteiro, vejam só! Tenho uma jaqueira no quintal. Esta semana vou preparar carne de jaca. É só procurar na internet. Tranquilo. Em outros tempos, onde aprenderia?
Às vezes, acho que não sou mais um indivíduo, e que me tornei um aplicativo. Estou em upload, em contínua transferência de dados. Vivo em modo de atualização. Aceitei esse novo jeito de viver. Este admirável mundo novo já se incorporou à minha rotina diária. As novidades de hoje serão passado amanhã. O mundo acelerou tecnologicamente. Eu e você também temos de seguir o ritmo.
Publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692