A funcionária pública Marília Barros, de 49 anos, atendeu o telefone às 7 e meia da manhã e ouviu a pergunta afobada de uma amiga: “Viu o que aconteceu no CT?”. O CT a que ela se referia é o centro de treinamento de futebol do Flamengo, na Zona Oeste carioca, onde o filho de Marília, Arthur Vinícius Barros, de 14 anos, semeava o plano de se tornar gigante nos gramados. “Não vi nada!”, exclamou a mãe, que ligou e desligou a TV em um gesto de autoproteção. Preferiu tentar o celular de Arthur, que caiu na caixa postal, e o do técnico. Nada também. Àquela altura, o grupo de WhatsApp dos pais dos meninos que dormiam no CT estava em alvoroço. Marília decidiu então ir até lá, 126 quilômetros distante de sua casa, que fica em Volta Redonda, no Vale do Paraíba, Rio de Janeiro. Entrou no carro de um amigo e, no caminho, eles pararam para pegar um primo do garoto, que, desavisado, desabafou: “Ai, o Arthur”. Marília rompeu o silêncio: “Ele morreu?”.
Batizado em homenagem ao maior ídolo do Flamengo, Arthur Antunes Coimbra, o Zico, o Arthur de Volta Redonda teve a vida abreviada em uma sexta-feira, 8 de fevereiro, por volta das 5 da manhã. Foi quando o fogo tragou o contêiner onde se acomodavam 24 adolescentes da categoria sub-15, ceifando o sonho e a vida de dez deles em menos de três minutos. Os que conseguiram escapar da morte estavam nos quartos mais perto da porta. Imagens de uma câmera de segurança mostram alguns saindo do alojamento com aparente tranquilidade, cientes apenas das chamas em um aparelho de ar condicionado, mas alheios à tragédia que se consumaria logo depois. Outros três escaparam pela janela. Arthur ocupava justamente o dormitório mais afastado da saída, o número 1 de um total de seis. Foi o que cravou seu destino.
De acordo com a perícia do Instituto Médico-Legal, ele e os colegas morreram por asfixia antes de ser atingidos pelas chamas. Sobreviventes ainda ouviram gritos de “socorro” e “mãe” por trás do paredão de fogo e fumaça que se formou. A maioria, porém, já estava entorpecida e sem forças depois de inalar o gás tóxico que se apossou do contêiner. Houve quem nem acordasse. Pablo Ruan Cardozo, de 16 anos, narra os minutos de horror: “Quando acordei, estava tudo escuro, eu não enxergava nada e sentia falta de ar. A porta tinha travado, então saltei pela janela”. A janela tinha grades, e Cauan Emanuel Nunes, de 14 anos, que despertou com um calor no rosto, teve outro reflexo: “Quebrei as grades, uma, duas”.
Arthur foi reconhecido pela arcada dentária. Um detalhe facilitou o processo no IML: o adolescente usava aparelho. Como a mãe não suportou a ideia de ver o filho naquele estado, delegou a penosa tarefa a Felipe Moura, de 38 anos, técnico de Arthur nos tempos em que ele jogava futsal no Sesi de Volta Redonda. Moura saiu do IML destruído. “Eu vi esse menino crescer. Encontrá-lo ali, com seu sonho interrompido, foi trágico. Procurei ficar pensando nas coisas boas do Arthur, para não fixar aquela imagem na cabeça”, contou a VEJA.
Para Arthur e os outros meninos alojados naquele contêiner, estar no CT do Flamengo era um sinal de que o futebol que jogavam em pequenos clubes encantara olheiros. O sonho cultivado pela turma era escalar na carreira e melhorar a vida da família. A dona de casa Fabiana Nogueira, de 45 anos, muito próxima a Arthur, o melhor amigo de seu filho, Yago, lembra: “Quando eu dizia que ia vender minha Parati, ele falava que não era para fazer isso, que ganharia dinheiro e reformaria o carro”. A euforia de Arthur contaminava a garotada da vizinhança em Volta Redonda, que o tinha como exemplo a ser perseguido. “Ele pedia que eu nunca parasse de treinar porque um dia eu ia chegar aonde ele havia chegado”, afirma Yago, de 13 anos, que recebeu convites de Flamengo e Botafogo para estrear no sub-15 quando completar 14, em dois meses. Abalado, não sabe o que fazer agora.
Canhoto de chute forte e bom na bola aérea, Arthur sonhava ser meia como Zico, mas a altura acabou levando-o à posição de zagueiro, camisa número 4. Aos 10 anos, já media 1,70 metro; aos 14, somava 1,85 metro. Era o “Bambu”. “Diziam que essa geração do Arthur era ótima”, comenta Zico, referindo-se a ele como “xará”. Aos 7 anos, o Vasco quis tirar o menino do Sesi, mas ele era novo demais para o sistema de alojamento e a família não tinha como custear a rotina de ir e vir de Volta Redonda ao Rio. O assédio dos clubes foi se intensificando. Em novembro de 2016, Flamengo e Atlético Mineiro disputaram seu passe. Ele, que era botafoguense como o pai, tragicamente morto a tiros ao seu lado quando Arthur tinha 5 anos, justificou à mãe a preferência pelo Ninho do Urubu, como o CT rubro-negro é conhecido: “Não sei por quê, mas me sinto bem aqui”. Agarradíssima ao filho único, Marília titubeou, mas pensou: “Dentro do clube, ele vai estar mais seguro que na rua”.
No Ninho, onde Arthur morava havia onze meses, novas instalações foram inauguradas pelo então presidente do clube, Eduardo Bandeira de Mello, em 30 de novembro de 2018. Elas ampliaram e modernizaram o que existia desde 2011. O projeto era inspirado em CTs de times europeus, com 42 suítes e instalações de hotel de luxo. Investimento: 23 milhões de reais. Caro, sim, mas adequado à realidade das finanças do Flamengo, hoje o clube mais rico do Brasil. Na estreia da ala nova, o vice-presidente de patrimônio, Alexandre Wrobel, explicou que o time principal ficaria nas dependências recém-construídas, enquanto os meninos sairiam dos alojamentos modulares (antes usados pelas estrelas rubro-negras como local de descanso) para os quartos ora ocupados pela equipe número 1. “Todos esses barracões, tudo isso sai e vira estacionamento”, anunciou Wrobel. A data-limite para a aposentadoria dos contêineres era março de 2019. Não deu tempo.
O time de Arthur tinha vida regrada ali dentro. Durante a semana, o treino ia das 8 às 11 horas, com intervalo para almoço, seguido de um turno escolar das 13 às 18 horas, lá mesmo dentro do CT. Pedidos de saída do Ninho do Urubu eram analisados caso a caso. Sábado era dia de jogo; no domingo, às vezes havia folga. Qualquer passo fora do roteiro era comunicado à mãe por Arthur. Na véspera do incêndio fatal, ele mandou uma mensagem. Queria encomendar um açaí a um serviço de delivery. “Claro, filho”, autorizou Marília, que gerenciava a bolsa que o garoto ganhava, em torno de 1 500 reais. Ele ficava sempre com um cartão para as pequenas transações do dia a dia. Comer pizza de chocolate à noite era uma delas. O pedido de açaí foi a última conversa entre mãe e filho, registrada às 20h30 de 7 de fevereiro no celular dela, e termina como todas. “Bênção”, escreveu Arthur, extremamente católico.
À primeira vista, o contêiner em que ele morava não chamava atenção por nenhuma precariedade: três beliches por dormitório, colchões confortáveis, ar-condicionado em cada quarto. As armadilhas estavam escondidas — ou, como viria a ser revelado mais tarde, nem tanto. Um inquérito instaurado pela Polícia Civil no mesmo dia do incêndio martela em pontos cruciais para entender exatamente o que se passou naquela madrugada infernal e apontar falhas e responsabilidades. Eis os tópicos relevantes da investigação:
Sistema de ar condicionado
A perícia concluiu que o fogo começou em um dos aparelhos, o do quarto número 6. As apurações já detectaram uma fragilidade: todos os aparelhos de ar condicionado do contêiner compartilhavam o mesmo circuito elétrico, o que pode ter facilitado a propagação das chamas de um para outro. Também se sabe que a fixação dos equipamentos, de tamanho menor do que o buraco em que foram instalados, envolveu espuma e plástico para preencher as frestas. Estuda-se se a concentração de calor dentro do módulo de aço fez com que os aparelhos funcionassem no limite, elevando os riscos. O Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea) lembra que a implantação de redes elétricas precisa ser feita por engenheiros, que produzem um documento conhecido pela sigla ART, em que se responsabilizam pelo serviço. O Crea requisitou o ART ao Flamengo, que não se pronunciou. O clube garante que os aparelhos estavam com a manutenção em dia. Alega ainda que o temporal que assolou o Rio na véspera causou picos de energia que podem ter danificado o sistema. A Light nega as oscilações.
Estrutura
As paredes do contêiner eram como um sanduíche, com duas chapas de aço recheadas de poliuretano, material altamente inflamável. O Flamengo e o fabricante dizem, no entanto, que o poliuretano usado nesse caso é do tipo “antichama”, que não propaga incêndio. A polícia apura.
Escape
Segundo o Crea, o alojamento deveria oferecer pelo menos duas saídas, e não uma, regra válida para qualquer espaço público. A inadequação não foi flagrada pelo Corpo de Bombeiros, que vistoriou o CT diversas vezes. Só no ano passado foram três visitas, a última em novembro. Detectaram-se a ausência de hidrantes e problemas no posicionamento de geradores, e por essas e outras nunca se emitiu certificado para o centro — e jamais se apontou o “risco flagrante de incêndio”. Detalhe: o contêiner foi ignorado pelos bombeiros, embora estivesse lá, de aço inconfundível. Por que eles o ignoraram? O Corpo de Bombeiros diz que, apesar de o contêiner ter sido instalado ali, ele não constava do projeto que o Flamengo havia apresentado à prefeitura. Questionado a respeito por VEJA, o clube não se manifestou. Pior: por falta de certificado dos bombeiros, o Ninho do Urubu não tem até hoje alvará de funcionamento. Por isso, o Flamengo foi multado 31 vezes pela prefeitura. E a vida seguiu.
Como já virou praxe no Brasil, depois da tragédia as emperradas manivelas do poder apressaram-se a agir. Na quarta-feira 13, saiu a decisão de um processo que se arrastava havia quatro anos na Justiça e já citava o contêiner: a pedido do Ministério Público do Rio, o CT está fechado a menores por ser considerado “não seguro”. O Ministério Público também resolveu avaliar as condições de trabalho e moradia dos meninos. A prefeitura interditou o Ninho (ordem não cumprida; a equipe principal continua treinando lá). E o Flamengo, que promete indenizar as famílias, avisou em nota que a nova diretoria “vai atender a todas as solicitações cabíveis” por parte dos órgãos públicos.
Extrovertido, fã de funk e pagode, sempre vaidoso com os cabelos, que descoloriu nas férias, Arthur andava esfuziante. Antes de voltar ao Ninho do Urubu, fez churrasco com amigos e jogou bola em um campinho de Volta Redonda. Depois, descansou na casa em que morava com uma tia e uma prima e dividia o quarto com a mãe. Na sala, a coleção de medalhas e o álbum de fotos de família, em que Arthur aparece com a bola no pé sem nem saber andar direito.
Na terça-feira 5, a mãe, sempre ela, levou Arthur de volta ao Rio. Ele só queria saber do aniversário de 15 anos, que comemoraria no sábado em grande estilo. Marília tinha pensado nos detalhes: não podiam faltar cachorro-quente nem sanduíche X-tudo. Ao ir embora, olhou para o filho e questionou: “É isso mesmo que você quer?”. E ouviu: “É meu sonho, mãe”. Abraçaram-se, e ele selou a despedida com um “Eu te amo”. No dia do aniversário o xará de Zico estava em um caixão branco envolto na bandeira do Flamengo. A multidão entoou o Parabéns a Você. Os sonhos de Arthur foram enterrados no jazigo M8883 do cemitério Portal da Saudade, em Volta Redonda.
Publicado em VEJA de 20 de fevereiro de 2019, edição nº 2622
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