No início de agosto, o ministro Napoleão Nunes Maia se reuniu reservadamente com um amigo em Brasília para pedir um conselho. Integrante do Superior Tribunal de Justiça (STJ) há treze anos, ele confidenciou ter recebido informações de que estaria sendo investigado clandestinamente por procuradores da Lava-Jato no Rio de Janeiro. Segundo ele, seus sigilos bancário e fiscal teriam sido violados sem autorização judicial, no bojo de um procedimento que apurava o envolvimento de escritórios de advocacia em um suposto esquema de venda de sentenças. A lei estabelece que juízes de cortes superiores têm direito a foro especial. Portanto, se a investigação existia, era extraoficial e, consequentemente, ilegal. O magistrado foi aconselhado a contratar um advogado e ingressar com uma reclamação no Supremo Tribunal Federal (STF) — o que foi feito no dia 7 daquele mesmo mês. O caso deu origem a um processo sigiloso que tem tudo para se transformar em mais um capítulo desabonador para a força-tarefa da Lava-Jato.
Relator da matéria, o ministro Gilmar Mendes pediu aos procuradores do Rio explicações sobre a existência ou não de alguma apuração sobre o colega do STJ. Em um ofício enviado ao Rio de Janeiro, o ministro questionou a força-tarefa se havia alguma tratativa de delação que envolvesse Napoleão Maia, se existiam conversas informais que mencionavam o ministro e se o nome dele foi citado em algum depoimento, audiência de testemunha ou reunião. Gilmar determinou ainda que eventuais diligências em curso, como por exemplo um possível grampo contra o magistrado, fossem imediatamente comunicadas. A resposta foi encaminhada dezessete dias depois. Nela, os procuradores informaram que um delator realmente mencionou o nome de algumas autoridades com direito a foro especial, mas que não havia qualquer imputação de crime a nenhuma delas. A suspeita do ministro do STJ, portanto, não procedia. Mas o caso não foi encerrado. Pelo contrário. A resposta serviu para ampliar a confusão.
No documento encaminhado ao Supremo, os procuradores do Rio também anexaram um organograma no qual Gilmar Mendes aparece conectado a advogados (veja reprodução na pág. 38). No texto, os procuradores apontam uma suposta falta de isenção de Mendes para atuar no caso, já que um cunhado dele tem uma filha que é casada com um dos advogados que supostamente fariam parte do esquema. A longínqua e forçada relação de parentesco, que lembra pela falta de consistência o PowerPoint do Lula, nada prova, mas vem acompanhada de um comentário: “Esses laços afetivo-familiares, lidos em conjunto com os demais achados, reforçam um cenário de inexistência de imparcialidade subjetiva do julgador”, afirma a força-tarefa. Os “demais achados” citados seriam negócios e transações financeiras entre os envolvidos.
A tal investigação em curso está ligada às revelações feitas pelo ex-presidente da Fecomércio-RJ Orlando Diniz. Em uma delação premiada cheia de inconsistências, Diniz contou ao Ministério Público que pagou mais de 150 milhões de reais a alguns escritórios de advocacia para conseguir decisões judiciais favoráveis. Na parte que veio a público do processo, o delator não detalha que decisões foram essas. Mas uma dessas sentenças favoráveis, de acordo com os investigadores, teria sido proferida pelo ministro Napoleão Maia. Se essa é a suspeita, só um procedimento poderia ser adotado: como manda a lei, os procuradores cariocas deveriam ter remetido imediatamente o caso à Procuradoria-Geral da República, a instância correta para o prosseguimento das investigações. Mas, questionados pelo STF, preferiram responder de forma marota sobre a participação de Maia e mandar um recado a Mendes com tal organograma.
Notório crítico dos exageros dos procuradores, Mendes foi alvo recente de uma ação da Lava-Jato para constrangê-lo. No ano passado, VEJA revelou a existência de uma investigação secreta e ilegal do fisco que apurava supostos “focos de corrupção” e tinha entre alvos o ministro, sua esposa e seus familiares, inclusive a mãe dele, que já estava morta (veja o documento ao lado). Não havia autorização judicial nem uma solicitação formal de qualquer autoridade para realizar o procedimento. Para piorar, as transações fiscais apontadas como “suspeitas” foram analisadas por dois especialistas consultados por VEJA e eram absolutamente legais. Na época, Mendes denunciou que era vítima de retaliação por parte da força-tarefa, por denunciar métodos considerados por ele como abusivos. Meses depois, o auditor Marco Aurelio Canal, membro da Lava-Jato na Receita e líder da ação contra Mendes, foi preso por cobrança de propinas. Os investigadores encontraram 232 000 reais em espécie na casa do tio de Canal.
A Lava-Jato foi — e é — um dos mais competentes e bem-sucedidos instrumentos no combate à corrupção no Brasil. Pela primeira vez na história, criminosos que se diziam políticos e empresários foram parar atrás das grades, mostrando que a Justiça enfim cumpria o seu papel e atingia a todos, mesmo os ricos e poderosos. Mas esse processo precisa ser feito respeitando-se sempre o estado democrático de Direito, em total obediência à Constituição. Ao transgredir o devido processo legal para, em tese, “prender os bandidos”, a Lava-Jato deixa de funcionar como um braço do Estado e passa a se assemelhar a grupos de extermínio, com seus próprios métodos de justiçamento e atuação. Quando isso acontece, erros terríveis (e absolutamente injustificáveis) se sucedem, como o assassinato de reputações e prisões de inocentes.
Logo depois de receber a resposta do Ministério Público, Gilmar Mendes pediu novas explicações sobre o caso, dessa vez diretamente ao juiz Marcelo Bretas, que autorizou os mandados de busca e apreensão contra os advogados citados na delação de Orlando Diniz. O magistrado carioca ainda não respondeu à intimação. Procurado, ele não se pronunciou. Os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato também não quiseram se manifestar. O procurador-geral Augusto Aras, a quem caberia pedir formalmente a suspeição de Gilmar Mendes, desconsiderou totalmente as observações do Ministério Público do Rio. Gilmar Mendes não quis falar a essa reportagem. Em nota, disse que está aguardando as respostas de Bretas para decidir sobre a reclamação.
Publicado em VEJA de 7 de outubro de 2020, edição nº 2707