Adriano relatou a familiares ameaça de facção infiltrada no governo do Rio
Enquanto estava foragido, o ex-capitão do Bope confidenciou ter dado 2 milhões de reais em dinheiro vivo à campanha de Witzel
No último dia 1º, Júlia Mello Lotufo, mulher do ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega, disse que ele seria morto numa operação de “queima de arquivo” organizada pelo governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. Na ocasião, não quis explicar por que Witzel se empenharia na morte do marido dela, que aconteceria oito dias depois, durante operação realizada pela Polícia Militar da Bahia, com a ajuda da equipe de inteligência da polícia fluminense. Desde então, Júlia está escondida. Assustada, confidenciou a pessoas próximas o medo de sofrer represálias de uma organização criminosa infiltrada na administração do Rio caso revele o que sabe. E ela sabe muito. Seus segredos contemplam tudo o que viu, ouviu e fez durante dez anos de relacionamento amoroso com Adriano da Nóbrega, o ex-policial que enriqueceu ao mergulhar no submundo do crime e foi acusado pelo Ministério Público de chefiar uma das mais temidas milícias do Rio.
A partir de conversas com parentes e pessoas do círculo íntimo de Adriano, VEJA descobriu a razão da manifestação pública de sua mulher. Enquanto estava foragido, ele confidenciou à esposa ter dado 2 milhões de reais em dinheiro vivo à campanha de Witzel ao governo do Rio. Também revelou a ela quem pediu e quem recebeu as mochilas de dinheiro — repassado, nas palavras dele, como uma espécie de investimento, um seguro que garantiria proteção para tocar seus negócios clandestinos sem ser importunado pelas autoridades, especialmente a polícia. A propina, na visão dele, seria a matéria-prima que selaria a paz entre as partes. Algo, porém, deu errado. Em janeiro de 2019, logo no primeiro mês de mandato de Witzel, o Ministério Público do Rio acusou Adriano de chefiar o Escritório do Crime e conseguiu uma ordem de prisão preventiva contra ele. Foragido, ativou sua rede de contatos e pediu socorro, invocando a ajuda financeira que prestara na campanha. Os amigos disseram a ele que Witzel queria usá-lo como um troféu, como prova da eficácia de sua política de segurança. “Mas ele não acreditava”, contou uma pessoa próxima do ex-capitão.
Adriano só passou a encarar Witzel de fato como um inimigo ao desconfiar que o governador queria mantê-lo na lista de suspeitos de participação no assassinato da vereadora Marielle Franco. Daí em diante, os pedidos de ajuda se transformaram em cobranças aos interlocutores de Witzel: “Estão querendo colocar essa morte na minha conta. Avisem a ele que eu o ajudei. Ele está deixando o MP me transformar num monstro e não vai fazer nada?”. Foi a partir desse momento, segundo seus parentes, que o ex-capitão começou a desconfiar que seu destino estava traçado. Se existe algo que o crime organizado não tolera é a quebra do código do silêncio, mesmo quando isso se constitui apenas numa possibilidade. Por meio de nota, o governador Wilson Witzel declarou que não conhecia Adriano nem recebera dele nenhum tipo de ajuda. Sobre a acusação de Júlia feita no dia 1º, informou que ela será processada por calúnia, difamação e injúria.
Com carreira de destaque dentro da PM até ser expulso da corporação, Adriano da Nóbrega era condescendente consigo mesmo. Seus parentes gostam de dizer que ele não era um anjo, já que realmente ganhava a vida com a exploração de grilagem de terras e de máquinas de caça-níquel, mas também não era o demônio que pintavam, numa referência às acusações de que cometia homicídios em série. Certa vez, já foragido, o suspeito de chefiar o Escritório do Crime declarou que só não era inocentado pelo MP porque virara personagem da disputa entre o governador do Rio e o presidente da República. Parceiros na campanha eleitoral de 2018, Witzel e Jair Bolsonaro se tornaram desafetos, sobretudo depois que anunciaram a intenção de concorrer ao mesmo cargo em 2022. “Ele percebeu que o governador queria, por meio dele, colar o selo de bandidagem na testa do Bolsonaro”, declarou uma pessoa do círculo íntimo do ex-capitão do Bope.
A relação da família Bolsonaro com Adriano da Nóbrega é antiga. Em 2003, o então deputado estadual Flávio Bolsonaro apresentou uma moção de louvor para elogiar Adriano cinco meses depois de ele ter matado um técnico de refrigeração durante uma ronda policial na qual tinha como parceiro o notório Fabrício Queiroz. Em 2005, Flávio concedeu a Adriano a Medalha Tiradentes, a maior honraria do Legislativo estadual. Também naquele ano, o deputado Jair Bolsonaro elogiou o ex-capitão do Bope na tribuna da Câmara dos Deputados. Quando a morte desse herói da família foi anunciada, Bolsonaro, conhecido pela verborragia desmedida, optou pelo silêncio. Àquela altura, ganhava as redes sociais a suspeita de que a primeira-família da República estaria por trás da ação, num caso clássico de queima de arquivo. O silêncio só foi rompido depois de VEJA revelar imagens do corpo de Adriano e, com base nelas, a avaliação de peritos de que ele pode ter sido executado, e não morto numa troca de tiros, como alega a polícia.
Aliás, quando lhe convém, Bolsonaro dá crédito à imprensa profissional. “Quem é o responsável pela morte do capitão Adriano? PM da Bahia, do PT”, disse o presidente num evento público no sábado 15. No mesmo dia, o Palácio do Planalto soltou a seguinte nota: “A atuação da PM-BA, sob a tutela do governador do estado, não procurou preservar a vida de um foragido, e sim sua provável execução sumária, como apontam peritos consultados pela revista VEJA. É um caso semelhante à queima de arquivo do ex-prefeito Celso Daniel, onde o seu partido, o PT, nunca se preocupou em elucidá-lo”. A nota oficial provocou reação imediata. Vinte governadores criticaram a manifestação do presidente, que teria se “antecipado a investigações policiais para atribuir graves fatos à conduta das polícias e seus governadores”. Entre os signatários estavam Rui Costa, da Bahia, e Witzel, que são pré-candidatos à próxima sucessão presidencial.
Durante a campanha ao governo do Rio, Witzel, ex-juiz e neófito na política, transformou-se no candidato do senador Flávio Bolsonaro. O Zero Um costuma dizer que carregou o atual governador nas costas e, quando este assumiu o cargo, foi traído por ele, que teria se associado ao Ministério Público e à Justiça do Rio para dar fôlego à investigação do caso da rachadinha. Convertido de aliado em conspirador, Witzel teria como objetivo desestabilizar o governo Bolsonaro e enfraquecer sua candidatura à reeleição. A morte de Adriano estaria de alguma maneira ligada à intenção de fazer certas conexões entre pessoas e situações. Até o primeiro turno, o principal braço político de Flávio Bolsonaro era Fabrício Queiroz, amigo de longa data e parceiro de ronda de Adriano da Nóbrega na Polícia Militar. Depois que o caso da rachadinha se tornou público, Queiroz chegou a declarar que recolhia parte dos salários dos servidores do gabinete de Flávio na Assembleia do Rio para custear a ação política do chefe. A ex-mulher de Adriano, Danielle Mendonça da Costa, e a mãe dele, Raimunda Veras, foram funcionárias do gabinete do então deputado.
Morto aos 43 anos, Adriano valorizava a lealdade e a palavra empenhada. No seu entorno, enquanto sobram críticas e acusações a Witzel, impera o silêncio sobre a família Bolsonaro. Na última terça-feira, o presidente declarou: “Poderia interessar a alguém a queima de arquivo. O que ele teria para falar? Contra mim, não teria nada. Se fosse contra mim, tenho certeza de que os cuidados seriam outros, para preservá-lo vivo”. O fato é que Adriano da Nóbrega, que já se sentia no meio de uma disputa política quando estava vivo, virou definitivamente motivo de um cabo de guerra depois de morto. “Talvez seja um problema tão grave que ele deve acordar, almoçar, jantar e pensar nisso 24 horas por dia”, disse o governador Rui Costa, comentando as manifestações diárias do presidente sobre o caso. “É como se ele tivesse receio de que alguma coisa fosse descoberta.” A provocação do petista pega carona numa preocupação externada pelo próprio Bolsonaro.
Durante a ação policial que resultou na morte do ex-capitão do Bope, a polícia recolheu treze celulares. “Quem fará a perícia nos telefones do Adriano? Poderiam forjar trocas de mensagens e áudios recebidos? Inocentes seriam acusados de crime”, escreveu o mandatário no Twitter. Desde o ano passado, há no entorno do presidente o temor de que sejam vazadas conversas que impliquem o clã Bolsonaro com milicianos, pecha que é usada pelo Ministério Público para definir Adriano da Nóbrega. Em dezembro, quando a pauta se restringia apenas ao esquema da rachadinha, o presidente disse em entrevista a VEJA que outro escândalo estava prestes a estourar e teria como origem interceptações telefônicas que mostrariam o envolvimento dele e dos filhos com o crime organizado no Rio. “Pegaram dois milicianos, sei lá quem, conversando, e a Polícia Civil gravando. Tem vários diálogos falando que no passado eu participava das milícias, pegava dinheiro das milícias e agora, presidente, não participo mais. Um papo de vagabundo.”
O catalisador da disputa política são as dúvidas sobre as circunstâncias da morte de Adriano: se ele foi executado, como alega sua família, ou morto numa troca de tiros, conforme a versão oficial. Na semana passada, a Justiça determinou a realização de uma nova perícia no corpo a fim de dirimir essa questão. Também pode contribuir para o esclarecimento do caso a coleta de depoimentos de personagens que foram cruciais para que as forças policiais encontrassem o ex-capitão do Bope. Um deles é o fazendeiro Leandro Abreu Guimarães, que deu guarida a Adriano em sua fazenda no município baiano de Esplanada. Os dois eram amigos pelo menos desde 2017. Já como foragido, Adriano se hospedou várias vezes na fazenda de Leandro, inclusive com a mulher e a filha mais nova. Quando fugiu de um cerco policial na Costa do Sauípe, foi a Leandro que pediu ajuda. O fazendeiro foi resgatá-lo. Também foi Leandro que, na véspera da morte, o levou da fazenda para o sítio onde Adriano seria alcançado pela polícia. Em depoimento formal, o fazendeiro declarou que fora obrigado por Adriano, sob ameaça de morte, a transportá-lo até o sítio.
Seus parentes contam outra história: “Ele foi torturado dentro da própria casa. Por isso contou para onde tinha levado o Adriano”. Na semana passada, repórteres de VEJA foram detidos pela polícia baiana quando tentavam entrevistar Leandro no município de Pojuca. “Como vocês acharam esse endereço?”, perguntou um dos agentes. Outro personagem fundamental para a compreensão do enredo é o motorista José Alves de Macedo Neto, o Zezinho. Depois da frustrada batida policial para prender Adriano da Nóbrega na Costa do Sauípe, Leandro indicou Zezinho para levar a mulher e a filha mais nova do ex-capitão da Bahia para o Rio de Janeiro. No trajeto, eles foram parados pela Polícia Rodoviária Federal. Os policiais perguntaram a Zezinho quem o indicara para prestar o serviço a Júlia Lotufo. Ele respondeu que tinha sido Leandro e, assim, deu aos policiais a pista definitiva para a descoberta do esconderijo de Adriano da Nóbrega.
Desde a operação policial em Esplanada, Zezinho está desaparecido. O motorista fazia bicos para Leandro, mas era funcionário do vereador Gilsinho de Dedé (PSL), dono do sítio onde Adriano foi morto. Gilsinho alega que não conhecia o ex-capitão do Bope, apesar de Adriano ter pernoitado várias vezes em sua propriedade, inclusive na companhia da mulher, Júlia. “Eu acredito na minha inocência. A do Zezinho, não tenho como falar”, declarou o vereador. Na pequena Esplanada, a lei que vigora é a do silêncio — e não apenas lá. As testemunhas, acuadas ou não, protegidas ou não pelo anonimato, continuam escondendo um pedaço da verdade.
Publicado em VEJA de 26 de fevereiro de 2020, edição nº 2675