Elevado à condição de mito por uma parcela significativa da população brasileira, Jair Bolsonaro parecia capaz de ainda manter grande parte desse seu poder apesar da derrota para Lula em 2022, ainda que por uma margem apertada. Esse capital político continuou valioso aos olhos de muitos mesmo após o duro golpe dado pela Justiça Eleitoral ao declarar a sua inelegibilidade em junho deste ano. A resiliência do ex-presidente, no entanto, dá mostras agora de que começa a ceder em razão da sucessão de escândalos variados, com suspeitas que vão da fraude em cartões de vacinação a conspirações para golpe de Estado, passando ainda pelas manchas inevitáveis provocadas por uma atabalhoada operação para vender joias recebidas em suas viagens oficiais.
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O potencial de estrago na imagem do capitão já foi detectado em pesquisas recentes. Levantamento feito pelo Datafolha mostra que, em São Paulo, maior cidade do país, 68% dos eleitores rejeitariam um candidato apoiado por ele. Outro levantamento, feito pelo Instituto da Democracia, uma organização que reúne pesquisadores da Unicamp, UnB, UFMG e Uerj, mostra que 56% citam “decepção” como o sentimento atual em relação a Bolsonaro. Como se não bastasse, as sondagens também mostram ventos mais favoráveis a seu principal adversário, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (veja o quadro).
Aliados políticos, principalmente do PL, encontram-se em estado de tensão e com planos paralisados, uma vez que não sabem mensurar, por ora, o impacto que terão os desdobramentos da crise em torno do ex-presidente. Correligionários próximos ao cacique do partido, Valdemar Costa Neto, dizem que alguns pontos demandam maior preocupação. Um deles diz respeito ao teor da delação firmada por Mauro César Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. O outro tem sido o conteúdo apreendido no celular do tenente-coronel, que aponta o planejamento de um golpe pós-eleição. “Isso pega muito mal e veio no pior momento”, diz um aliado, referindo-se à intenção do cacique do PL de recorrer aos tribunais internacionais contra a condenação de Bolsonaro à inelegibilidade. Se a ideia já era difícil de colar, com as novas revelações provavelmente será sepultada de vez.
As três principais frentes a serem abertas por revelações de Cid podem, em tese, implicar o ex-presidente em ao menos cinco crimes. O caso das joias e relógios, se confirmados a ilegalidade das vendas e o retorno financeiro a Bolsonaro, poderia caracterizar delitos de peculato e lavagem de dinheiro. A adulteração dos cartões de vacinação do capitão e de outras pessoas, motivo inicial para a prisão do ex-ajudante de ordens, configuraria, no limite, falsidade ideológica de documento público. Já as conspirações golpistas, como as encontradas no celular de Cid e reveladas por VEJA em junho, poderiam robustecer acusações pelos crimes de tentativas de abolição violenta do Estado democrático de Direito e golpe de Estado.
A efetividade das provas, aliás, será escrutinada em contexto distinto daquele em que as delações premiadas se tornaram esporte nacional, com a Lava-Jato. Desde 2019, está em vigor o pacote anticrime, que dificulta a vida de delatores que não subsidiarem as acusações com provas. Ações penais e denúncias baseadas apenas em palavras têm sido sucessivamente rejeitadas pelo STF e Procuradoria-Geral da República. “Sabendo que nenhuma ação penal ou medida cautelar pode ser requerida só com base no que disse o delator, parece pouco inteligente que a PF tenha aceitado uma delação sem que se tenha sinalizado elementos de provas”, avalia o criminalista Gustavo Badaró, professor de Direito Processual Penal da USP.
As revelações do ex-faz-tudo de Bolsonaro devem agravar ainda mais a já complicada situação judicial do ex-presidente, à medida que servirão ao aprofundamento das investigações. Bolsonaro é alvo de inquéritos que tramitam no STF em diferentes estágios e miram a atuação de milícias digitais – investigação na qual o acordo de delação foi assinado –, incitação aos atos de 8 de janeiro, vazamento de dados sigilosos de uma apuração policial sobre um ataque ao sistema do Tribunal Superior Eleitoral, interferência indevida na PF, disseminação de ataques ao Supremo e notícias falsas sobre a vacina contra a Covid-19. Após ter sido declarado inelegível, Bolsonaro ainda responde a outras quinze ações semelhantes no TSE.
Como se vê, as várias frentes de batalha que Bolsonaro encara nos tribunais são altamente desafiadoras. Depois de o ministro Alexandre de Moraes homologar a delação de Mauro Cid, etapa em que analisou a legalidade e a espontaneidade dos termos, e da saída do tenente-coronel da prisão, a defesa do ex-presidente tem se mantido discreta a respeito dos próximos movimentos. Os advogados dele e da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro tiveram negado por Moraes um pedido para acessar o conteúdo do depoimento de Cid à PF em 31 de agosto, e buscarão reverter a derrota. O casal optou por ficar em silêncio nos seus depoimentos — agendados de forma simultânea com outros investigados —, usando posicionamento da PGR de que o caso deve ser conduzido na primeira instância, e não no Supremo. Outras estratégias, pelo que se viu das falas recentes de Bolsonaro, são dizer que não ordenou nem fez nada errado na questão das joias e debater a falta de regras claras para os presentes oficiais — resta saber se esse tipo de argumentação resistirá à delação de Mauro Cid.
Além do que já está no horizonte, outro ponto que tem tirado o sono da cúpula do PL é até onde irão as investidas da PF e do Supremo. O que preocupa em especial é o cerco a dois nomes caros aos planos do partido: Michelle, que comanda a ala feminina da sigla, e o general Walter Braga Netto, ex-candidato a vice na chapa de Bolsonaro e que hoje ocupa o cargo de secretário de Relações Institucionais do PL. Ambos são tidos como peças-chave na ampliação das candidaturas a prefeitos e vereadores e como importantes nomes para a eleição de 2026. “A previsão era de que Michelle passasse a visitar de três a quatro estados por mês em eventos grandes de filiações, mas isso já está sendo recalculado”, diz um interlocutor de Costa Neto. Há ainda o temor de que a colaboração de Cid atinja gente do círculo mais restrito de Bolsonaro, como o filho e senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), os advogados Fabio Wajngarten e Frederick Wassef, o segundo-tenente Osmar Crivelatti e o coronel Marcelo Câmara, ex-auxiliares da Presidência.
Analistas políticos têm concordância em ao menos dois aspectos da crise. Um deles é que ainda é difícil calcular até que ponto esse desgaste de Bolsonaro poderá se acentuar — e quanto isso deverá impactar as futuras eleições. “É precipitado afirmar que Bolsonaro perdeu capital político. Acredito que o que ele perdeu foi capacidade de mobilização política”, diz Felipe Nunes, diretor da Quaest. Um impacto disso pode ser sentido nas redes sociais, um dos pilares que sempre sustentaram o frenesi do eleitorado em torno do ex-presidente. “Os escândalos deixam a rede bolsonarista mais quietas, e elas são um braço importante do bolsonarismo pelo poder de engajamento que têm. Os grupos estão sem comando claro, mas isso não significa que não vão se aglutinar novamente”, diz a pesquisadora Cila Schulman, CEO do Instituto Ideia.
O outro ponto sobre o qual há um certo consenso é que Bolsonaro, apesar de tudo, continuará sendo um ator importante do jogo eleitoral. De acordo com Murilo Hidalgo, diretor do Instituto Paraná Pesquisas, em relação ao resultado da última eleição, a diferença entre os que preferem Lula a Bolsonaro saltou de 2% para 9%, de acordo com as sondagens mais recentes. “Ocorreu um desgaste, mas o capital político caiu pouco. A não ser que haja fatos novos, em 2024 ele será, disparado, o grande cabo eleitoral da direita”, aposta. Um dos motivos a sustentar Bolsonaro é que ele segue como o expoente máximo do sentimento contra o PT e o pensamento de esquerda no país.
Escândalos como o desvio das joias sauditas e o possível envolvimento com os atos de 8 de janeiro podem impactar parte do eleitorado, mas entre os bolsonaristas fiéis a falta de uma prova cabal que incrimine o ex-presidente abre margem para toda sorte de justificativas. Boa parte desse público, inclusive, sente-se representada pelos ataques sistemáticos contra as instituições . “Nas maiores capitais, o sentimento antipetista e a pauta de costumes acabam sendo mais fortes do que as próprias questões de gestão municipal. Os candidatos precisam considerar essa influência sobre o eleitorado”, afirma Cila Schulman. Para o ex-ministro Rogério Marinho (PL-RN), que hoje é o líder da oposição no Senado, existe um desgaste “evidente” do ex-presidente, mas não a ponto de derretimento do poderio dele junto ao eleitorado. “Bolsonaro representa um conjunto de ideias que estavam desorganizadas: a defesa da tradição, da família, da liberdade. Ele é inegavelmente a liderança desse espectro político, e esses valores permanecerão, independentemente de quem os encarne na eleição”, acredita.
A tempestade em torno de Bolsonaro, no entanto, ainda está em formação. Um dos especialistas em comunicação que atuaram diretamente com o ex-presidente na última campanha vê o cenário com mais cautela do que os pesquisadores. “Bolsonaro ainda consegue manter os votos duros, mas existe um desgaste”, afirma. Para ele, o fato de a avaliação do governo Lula estar melhorando, também segundo as últimas sondagens, indica que o potencial do derretimento da imagem de Bolsonaro é maior do que está sendo calculado. Pesquisa do Instituto da Democracia mostra que 44% dos brasileiros avaliam que a economia melhorou no atual governo em comparação com o período Bolsonaro — apenas 23% acham que ela piorou.
Em política, claro, nenhum veredito é definitivo — ainda mais no Brasil —, e a reabilitação de Lula após a Lava-Jato é a prova eloquente disso. A avalanche de denúncias que Bolsonaro enfrenta, no entanto, vai colocar à prova a solidez do seu edifício político. A ver se o “mito” resistirá a essa tempestade perfeita.
Colaborou Bruno Caniato
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859