Na arrastada negociação para a adesão ao governo, o Centrão sempre pediu o controle de um ministério com orçamento bilionário, engrenagem azeitada para a liberação de emendas parlamentares e ações capazes de impactar o dia a dia dos eleitores. O sonho de consumo do grupo era o Ministério da Saúde, que tem um orçamento de 190 bilhões de reais neste ano. Lula não aceitou. O segundo pedido foi o Ministério do Desenvolvimento Social, com orçamento de 273 bilhões de reais em 2023, boa parte carimbada para o pagamento do Bolsa Família e de benefícios assistenciais. O presidente, mais uma vez, não concordou. Depois de meses de ofertas e barganhas, o Centrão aceitou assumir o Ministério do Esporte, que tem um orçamento de 1,3 bilhão de reais, diante da promessa de que a pasta seria turbinada com o setor de apostas esportivas, que está sendo finalmente regulamentado no país. Não foi apenas uma rendição ou um recuo, como parece, mas também um investimento do grupo, já que, segundo estimativa de técnicos do Ministério da Fazenda, as apostas esportivas movimentam entre 100 bilhões de reais e 150 bilhões de reais por ano, fazendo do Brasil um dos três maiores mercados do mundo.
Como de costume, essa dinheirama despertou cobiça. De forma transparente, o governo propôs taxar em 18% o valor arrecadado pelas empresas de apostas esportivas, como forma de melhorar as contas públicas. Já nos bastidores do Congresso, quase sempre avessos à necessária luz do sol, esse setor bilionário serviu de pretexto para a retomada de um roteiro conhecido, no qual parlamentares apresentam dificuldades para, depois, tentar vender facilidades. Pelo menos essa foi a história contada ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad. No fim de agosto, Haddad foi alertado por um assessor especial de sua equipe de que um deputado federal da base governista teria pedido 35 milhões de reais a uma associação que reúne empresas de apostas em troca de duas contrapartidas: defender seus interesses na regulamentação do setor e não transformar a vida de seus associados num inferno na CPI das Apostas Esportivas, instalada na Câmara dos Deputados. Como a regularização das empresas e um ambiente republicano são fundamentais para que o governo possa arrecadar tributos, o ministro pediu a um seleto grupo de parlamentares que redobrasse a atenção com os trabalhos da CPI, a fim de evitar pressões indevidas ou achaques às chamadas bets, o que poderia afastá-las do mercado brasileiro.
Como cabe às autoridades encaminhar aos órgãos competentes denúncias de irregularidades e corrupção, Haddad também perguntou ao assessor que lhe relatou o pedido de propina se a acusação havia sido formalizada e se havia provas contra o parlamentar citado. As respostas foram negativas. O ministro, então, orientou o assessor — em caso de uma nova reunião com o denunciante — a convocar a equipe de controle interno do ministério para produzir um documento oficial sobre a denúncia, permitindo, assim, seu envio para a Polícia Federal e o Ministério Público. Essa nova reunião não ocorreu. Haddad recebeu os detalhes do caso do assessor especial José Francisco Manssur, cotado para assumir a secretaria que cuidará das apostas esportivas. Advogado com experiência na área de esportes, Manssur foi procurado pelo presidente da Associação Nacional de Jogos e Loterias, Wesley Cardia, que pediu uma conversa em caráter de urgência. Recebido no ministério, Cardia contou que foi abordado pelo deputado Felipe Carreras (PSB-PE), relator da CPI das Apostas Esportivas, que teria lhe pedido 35 milhões de reais em troca de ajuda e proteção. Ele disse ainda a Manssur que um assessor do deputado já havia lhe abordado anteriormente e acrescentou que outros integrantes da CPI pressionavam o setor em busca de vantagens financeiras. O suposto achaque, segundo o relato, teria acontecido em pleno Salão Verde da Câmara. O executivo deixou o Congresso, foi até o Ministério da Fazenda e, da portaria do prédio, passou uma mensagem para Manssur: “Preciso falar com você com urgência”. Foi autorizado a subir até o gabinete do assessor especial. O encontro e o teor da conversa foram confirmados a VEJA por uma fonte qualificada do Ministério da Fazenda e detalhados por um dirigente da associação.
O relato não surpreendeu o assessor de Haddad, que já havia recebido informações sobre abordagens estranhas aos executivos. Manssur também se reuniu com o presidente do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável, Andre Gelfi, e outros dois diretores da entidade, que representa empresas internacionais do ramo de apostas esportivas. Na ocasião, informado sobre as investidas, ele advertiu que o governo não compactuava com a cobrança de propina, recomendou que nada fosse pago em qualquer hipótese e afirmou que, diante de tal posicionamento, ninguém poderia alegar no futuro ter sido vítima de achaque. Antes da conversa presencial, Manssur já tinha enviado uma mensagem com esses mesmos termos ao diretor jurídico do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável, de quem foi colega de trabalho numa prestigiada banca de advocacia.
Procurado, o instituto confirmou ter recebido do Ministério da Fazenda a notificação. “Em diálogo com a assessoria do Ministério da Fazenda, ouvimos uma recomendação que condiz com a nossa forma de atuar e de enxergar a evolução nas relações institucionais: não ceder a qualquer pedido não republicano que eventualmente viesse do governo ou do Congresso. Seguimos firmes com esse propósito.” A associação comandada por Cardia também divulgou uma nota sobre o caso: “Esta questão nunca foi tratada no âmbito do Ministério da Fazenda. A ANJL reforça que é a favor da discussão clara, objetiva e republicana sobre toda e qualquer matéria em tramitação no Congresso ou em discussão no governo que trate da regulamentação das apostas esportivas”. Apesar do posicionamento da entidade, Cardia confidenciou a algumas pessoas ter sido avisado por Manssur inclusive que o ministro já havia sido informado do caso.
Apontado como o autor do pedido de propina, o deputado Felipe Carreras é líder do PSB, partido do vice-presidente Geraldo Alckmin, e tem boas relações com o presidente da Câmara, Arthur Lira, que o escolheu para ser o primeiro a comandar, na atual legislatura, o maior bloco partidário da Casa. Além do protagonismo na CPI das Apostas Esportivas, Carreras relatou o projeto que libera o jogo no Brasil, já aprovado na Câmara e à espera de análise no Senado. Quando Manssur se reuniu com Wesley Cardia no Ministério da Fazenda, ocasião em que ouviu o relato sobre o pedido de propina, o deputado era considerado favorito para relatar a regulamentação das apostas esportivas, mas acabou preterido dias depois. A VEJA, Carreras disse ter participado dos eventos de lançamento das duas associações, assim como outros parlamentares, e admitiu ter se reunido com Wesley Cardia e Andre Gelfi, mas garantiu que “nunca” — termo que repetiu três vezes em sequência — pediu propina a nenhum deles ou a nenhum dos associados das entidades. “É uma grande injustiça comigo.” Vale ressaltar, mais uma vez, que nenhuma evidência material foi apresentada contra o deputado.
No início de agosto, Wesley Cardia e Andre Gelfi foram convidados a prestar esclarecimentos à CPI das Apostas Esportivas. Segundo Carreras, a medida foi necessária porque não dava para mergulhar no foco principal da comissão, a manipulação de resultados de partidas de futebol, sem entender como funcionavam o setor de apostas e as próprias empresas. Carreras também alega que, desde o início dos trabalhos da comissão, preferiu tratar com as duas associações em vez de “fulanizar” em companhias específicas, até para não lançar suspeitas indevidas sobre elas. “Tem algum indício de participação das bets no esquema de manipulação de resultados? Zero”, declarou o deputado. Uma parte dos integrantes da comissão pensa diferente — uma parte, aliás, que recebeu dos representantes das empresas o sugestivo apelido de mad dogs — cachorros loucos. Uma consulta à página da comissão na internet, feita na quarta-feira 20, mostrava a existência de 280 requerimentos em tramitação. Do total, 22 pedem alguma quebra de sigilo. Um deles solicita a quebra de sigilo bancário justamente de Andre Gelfi e Wesley Cardia e foi apresentado pelo deputado Luciano Vieira (PL-RJ) dias antes de Cardia e Gelfi serem recebidos para conversas com o assessor de Haddad.
Autor de dezoito dos 22 requerimentos de quebra de sigilo, Luciano Vieira alegou genericamente a necessidade de apurar possíveis práticas criminosas na movimentação financeira das apostas. Na mesma época das reuniões entre o assessor da Fazenda e os representantes das associações, o deputado Beto Pereira (PSDB-MS) apresentou três requerimentos pedindo a quebra dos sigilos das empresas SportingBet, Betway e Betsson — as duas últimas têm como representantes no Brasil, respectivamente, um diretor do Instituto Brasileiro do Jogo Responsável e o próprio Gelfi. Todos os três requerimentos têm a mesma justificativa: “Diante da relevância do tema e dos fatos investigados por esta Comissão Parlamentar de Inquérito, se faz necessária a quebra do sigilo da empresa”. A apresentação de requerimentos é parte importante de qualquer investigação e não encerra a priori qualquer tentativa de obtenção de vantagem indevida. Pelo contrário, é um instrumento poderoso e necessário de apuração. O que chama a atenção nesse caso são as coincidências.
No caso da CPI das Apostas Esportivas, a quantidade de requerimentos propostos e, principalmente, o fato de poucos terem sido efetivamente votados provocaram uma tensão entre o relator, Felipe Carreras, e outros integrantes, como os deputados Marcelo Álvaro Antônio (PL-MG) e Wellington Roberto (PL-PB), que reclamaram frequentemente da falta de vontade para apreciação dos textos. VEJA perguntou a Carreras por que, se ele mesmo diz que não havia indícios contra as bets, foram apresentados tantos requerimentos de convocação e quebra de sigilo de empresas e seus representantes. “O que você imagina?”, devolveu o deputado, tangenciando a resposta. Na sequência, ele mesmo ponderou que os requerimentos não foram votados porque não havia nada que justificasse os pedidos. “Pela regra, cabe ao presidente da comissão pautá-los. Para você quebrar o sigilo de uma empresa, é preciso ter indício de alguma coisa. Não dava para partir para uma investigação sem qualquer indício sobre casas de apostas”, acrescentou. Por decisão de Arthur Lira, a comissão será encerrada no próximo dia 26, ao contrário do que queriam alguns de seus integrantes. Já a regulamentação do setor de apostas esportivas continua em curso.
Em 13 de setembro, a Câmara aprovou a taxação de 18% dos valores arrecadados pelas bets, excetuando os prêmios pagos, o que pode render entre 2 bilhões de reais a 12 bilhões de reais por ano aos cofres da União. Para ser formalizada no mercado brasileiro, cada empresa terá de pedir autorização e pagar uma concessão de 30 milhões de reais. As associações do setor defendem, entre outras coisas, uma taxação menor. Técnicos da Fazenda chegaram a sinalizar a redução da alíquota para algo entre 10% e 12%, depois de serem lembrados de que, quanto menor a cobrança, maior será a formalização e, assim, a base de contribuintes. Os deputados, no entanto, mantiveram o percentual de 18%. Mas eles também promoveram algumas mudanças. Com o Centrão à frente do Esporte, agora comandado pelo deputado licenciado André Fufuca, eles decidiram que a pasta receberá 4% do tributo arrecadado, e não 1% como proposto inicialmente pela equipe de Fernando Haddad. O projeto seguiu para o Senado. Ainda não está certo quem comandará a secretaria das apostas esportivas — ou quais atribuições ficarão com a Fazenda e quais com o Esporte. Há muito a ser debatido. Há também muitos interesses em jogo — do governo, de congressistas, das empresas e de espertalhões que sempre tentam tirar a sorte grande quando a disputa envolve cifras dessa magnitude.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2023, edição nº 2860