Quando, em 2 de março de 1867, a Howard University inaugurou suas instalações em Washington D.C., no coração da República, e recebeu nos bancos das salas de aula dos cursos de teologia e medicina os primeiros negros livres da escravidão, após a Guerra Civil de 1865, além da justa euforia e do incontido entusiasmo, seguramente um sentimento de otimismo tomou conta de boa parte da população americana. Estava aberta uma das portas que conduziriam os negros ao gozo e ao usufruto dos propósitos narrados pelos pais fundadores da nação de que todos os homens foram criados iguais e de que são dotados pelo Criador dos direitos inalienáveis da vida, da liberdade e da busca de felicidade.
Nos mais de 150 anos de história, Howard e cerca de duas centenas de universidades negras públicas e privadas americanas produziram milhares de cérebros e talentos, conhecimento, tecnologia e inovação, e ajudaram a difundir para todo o planeta a criação, a inventividade, a habilidade e a competência do negro americano na academia, no cinema, na arte, na dança, na música, na medicina, na matemática, na política, no esporte e na cultura em geral. Produziram pérolas negras como Thurgood Marshall na Suprema Corte, Martin Luther King, Toni Morrison, prêmios Nobel da paz e da literatura. E todos juntos concretaram as pontes por onde atravessaram, entre tantos outros, os secretários de Estado Colin Powell e Condoleezza Rice, Guion Stewart Bluford, astronauta negro com quatro viagens ao espaço, o atleta Carl Lewis e, lógico, Oprah Winfrey, Spike Lee, Michael Jackson, Beyoncé, Michelle e Barack Obama.
Os negros fizeram tudo certo e fizeram a coisa certa. Robusteceram a fé, burilaram o intelecto e cultivaram e fortaleceram a crença na Justiça, como garantidora do tratamento justo e igualitário, independentemente de raça ou cor da pele. Mas os táxis de Washington muitas vezes não param quando um aluno negro da Howard acena e dificilmente aceitam corrida ou atendem chamadas para os bairros negros; o cliente branco dispensa a corrida quando o motorista de táxi é negro. Os negros, 13,4% dos americanos, são a maioria entre os desempregados, a maioria entre os miseráveis e a maioria dos presos no sistema carcerário.
Quando, em 2003, a Universidade Zumbi dos Palmares abriu as suas portas, no coração da cidade de São Paulo, para receber os primeiros jovens negros, no curso de administração de negócios, a população brasileira negra ficou em júbilo. Pela primeira vez na história do Brasil, uma universidade negra comunitária, criada por negros, colocava-se de pé para ampliar os caminhos da liberdade, fortalecer os propósitos da igualdade e do pertencimento, incluir, qualificar, aprimorar e empoderar social e intelectualmente os brilhantes, habilidosos, criativos e competitivos talentos negros, que desde sempre a história do país deixa pelo caminho.
A luta pioneira da Universidade Zumbi dos Palmares ajudou a salvar vidas e a construir as pontes pelas quais mais negros chegaram à mídia, à propaganda, às novelas, às revistas de glamour, às empresas, à política, aos espaços de prestígio, aos tribunais e até mesmo ao Supremo Tribunal Federal. Em 2019, com o livro Black Box (“Caixa preta”), que reúne as grandes realizações dos negros na história mundial, e com a campanha Machado de Assis Real, que resgata a negritude do maior escritor brasileiro, pela primeira vez uma universidade brasileira conquistou dois prêmios no Festival de Cannes (um Leão de Ouro para o primeiro projeto e um de bronze para o segundo) e tornou obrigatória, nos mais importantes ambientes literários do país e do exterior, a substituição da fotografia branca de Machado de Assis pela sua real imagem negra.
Mas o jovem negro da Zumbi, tal qual os das universidades negras americanas, é parado pela polícia ainda na porta da universidade, esteja vestido com roupas simples do batente ou com um terno bacana e num carro bom, custeado por alguns gordos estágios.
Na nossa democracia racial brasileira, os negros da Zumbi e todos os demais 54% dos negros do país, num processo sistemático de limpeza étnica, são apagados da estética oficial miscigenada. São invisibilizados e excluídos da cena política, social, cultural e artística, apartados do ambiente corporativo público e privado.
No nosso estado de direito, os negros são chicoteados, amordaçados, seviciados e mortos nos interiores dos vistosos hipermercados. Nossos ambientes de artes ficam perturbados com a presença negra e os seguranças dos shoppings e das lojas de luxo não abandonam nem por um segundo o cliente negro. Na democracia brasileira, nossos salões de moda precisam que os negros se acorrentem do lado de fora para que possam se apresentar do lado de dentro, nas passarelas.
No maior país negro das Américas, professores e cientistas negros inexistem nas grandes ou nas menores escolas e universidades públicas e privadas. No país de miscigenados e da democracia racial não existe um presidente negro nas 2 000 maiores empresas nacionais ou multinacionais.
No estado democrático de direito brasileiro, as forças policiais realizam limpeza étnica e genocídio contra os negros à luz do dia. O racismo estrutural do Estado e da elite política e econômica usa como método o modo automático da indiferença, a omissão, a informalidade e o silêncio.
Lá como cá, imperam a ambiguidade e o casuísmo de uma República construída sobre o pântano da escravidão, a desonestidade e a dissimulação de um pacto político que distorceu e subverteu os propósitos e objetivos da nação. Reinam também a vilania e a indiferença de uma Justiça que sufragou como legítimo um estado de apartheid racial, que envenenou a atmosfera com ódio e preconceito racial e transformou o racismo estrutural em arma política de grupos de interesses para a captura, a manutenção e o monopólio dos privilégios e oportunidades sociais.
Lá como cá, o racismo estrutural e a discriminação racial, que mantêm negros e brancos separados e desiguais, se transformaram no joelho ostensivo que sufoca, asfixia e estrangula o pescoço de americanos e brasileiros, impedindo a todos de respirar livremente.
George Floyd não está mais sozinho. Junto com os milhões de jovens negros e brancos de todo o mundo, seus pulmões estão abarrotados de ar para gritar e exigir nas ruas a mudança e a transformação do nosso tempo. E, quando polícia e políticos se põem de joelhos para ouvir e se solidarizar com o povo, acende uma luz de esperança. Liberdade, igualdade, honestidade, confiança, segurança, verdade e fraternidade: esse é o ar que faltou a Floyd, esse é o ar que todos queremos, precisamos e exigimos para definitivamente respirar e viver livres e em paz.
Jose Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares
Publicado em VEJA de 19 de agosto de 2020, edição nº 2700