O Tribunal Superior Eleitoral ainda nem definiu quando começa oficialmente a temporada de caça ao eleitor de 2022. Mas isso é apenas um detalhe formal para o presidente Jair Bolsonaro, que não esconde o sonho de se reeleger e se dedica a isso desde o início do mandato. A obsessão aumentou em março deste ano, quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recuperou os direitos políticos e entrou de cabeça na disputa. O ex-ministro Ciro Gomes (PDT) é outro que já subiu no palanque e o cordão deve engrossar nos próximos meses com mais concorrentes de oposição. A novidade agora é que, apesar de o país ainda estar em meio a uma grave pandemia — com risco de terceira onda —, a campanha começa a ganhar as ruas.
O primeiro passo da nova fase foi dado por Bolsonaro, e de forma inusitada: sobre duas rodas. Começou no dia 7 de maio, quando pilotou uma moto na inauguração de uma ponte sobre o Rio Madeira, em Porto Velho (RO), levando na garupa o ministro Tarcísio de Freitas (Infraestrutura). Dois dias depois, o capitão reuniu milhares de veículos em uma “motosseata” pelas ruas de Brasília. Parece que pegou mesmo gosto pela coisa — autoconvidou-se para passeios semelhantes no Rio de Janeiro, em São Paulo e Belo Horizonte. A etapa fluminense do tour eleitoral se materializou no domingo 23 reunindo um séquito de motoqueiros em um giro pela cidade. Dessa vez com muitos recursos públicos, como a mobilização de 1 000 policiais e um helicóptero da FAB para levar deputados aliados. Ao final, discursou sobre um carro de som ao lado do ex-ministro da Saúde e general da ativa Eduardo Pazuello. “Isso nos traz oxigênio, responsabilidade e autoridade para agir em nome de vocês”, disse Bolsonaro, com uma jaqueta do motoclube “Cavaleiros de Aço” — e sem máscara, é claro.
O presidente até tenta disfarçar que não está em campanha. Para isso, buscou dar ares de espontaneidade à convocação para o ato no Rio durante a sua live transmitida três dias antes: “Eu fiquei sabendo disso aqui agora. Mas vamos lá, sim”. É evidente que se trata de uma estratégia de dissimulação: ele sugere aos grupos de motociclistas que o convidem para um passeio, diz que foi convidado, confirma a participação e o “convite” se espalha pelas redes bolsonaristas. Além de alguma identidade ideológica, a simpatia da turma motorizada não é gratuita: o presidente prometeu isentar as motos do pagamento de pedágio nas rodovias federais. “Tem contratos antigos que eu não posso passar por cima. Já acertei com Tarcísio para ele botar nas futuras concessões e a gente tirar as motos fora”, disse.
A demagogia sobre duas rodas serviu de combustível para ganhar os grupos no WhatsApp e no Facebook. “Os motociclistas reconhecem nele um autêntico pai”, sintetiza o presidente da Federação de Motoclubes do Rio, Humberto Montenegro. O organizador-mor do evento no Rio foi o ex-assessor e amigo de longa data de Bolsonaro Waldir Ferraz, o Jacaré. “Foi minha a ideia, total. Eu convidei o presidente, e ele topou. Depois, apareceram os puxa-sacos”, afirma. As imagens de milhares de motoqueiros liderados pelo presidente deram um upgrade às aparições eleitorais de Bolsonaro. Até então, ele vinha se limitando a uma agenda intensa de inaugurações de obras, principalmente no Nordeste, e às já tradicionais recepções de simpatizantes em aeroportos, todos aglomerados e sem máscara, replicando o exemplo do líder.
A aceleração bolsonarista nas ruas desencadeou o efeito descrito na terceira lei de Newton (“a toda ação corresponde uma reação de igual intensidade, mas de sentido oposto”). Mal tinha acabado o agito no Rio e a hashtag #dia29 já estava entre os assuntos mais comentados do Twitter ecoando um chamado da oposição para uma manifestação pelo impeachment do presidente, no sábado, dia 29. A convocação do ato, que até quinta-feira estava confirmado em 112 cidades, representa uma importante mudança de posição dos grupos de esquerda, que vinham evitando um chamamento do tipo em meio à pandemia — não raro, usavam isso para acusar os bolsonaristas de desrespeito à vida. O protesto já estava agendado desde 11 de maio, após longos debates virtuais com mais de 300 dirigentes de entidades, como o MTST (sem-teto), MST (sem-terra), UNE (União Nacional dos Estudantes), Coalização Negra (antirracismo) e partidos políticos como PT, PSOL, PCdoB e Rede. Mas ganhou força com as aparições-espetáculos de Bolsonaro. “Decidimos que, depois de tanta espera, chegou o momento”, diz Raimundo Bonfim, líder da Central de Movimentos Populares. A mudança de postura já havia sido sinalizada por Guilherme Boulos, coordenador do MTST, em entrevista a VEJA na semana passada. Para ele, a ideia é “equilibrar as forças na ruas”, que estão “defasadas” pelo fato de os opositores estarem recolhidos em casa em toda a pandemia como precaução contra a Covid-19.
A aparente contradição entre criticar o bolsonarismo pela postura errada na pandemia e a decisão sobre ir às ruas no pior momento da crise sanitária é motivo de desconforto na esquerda: afinal, como justificar o fato de se aglomerar nas ruas para protestar contra o negacionismo do presidente? Os organizadores têm uma resposta na ponta da língua, embora sua aplicação seja algo difícil de imaginar. “Tudo vai ser feito com muito cuidado, máscaras e álcool em gel”, diz o presidente da CUT em São Paulo, Douglas Izzo. Preocupados com a imagem e o questionamento que certamente virão dos bolsonaristas, os movimentos de esquerda garantiram que vão montar “barracas sanitárias” e distribuir milhares de máscaras e álcool. Apesar do discurso, a iniciativa provocou reações contrárias, sobretudo entre as entidades que representam trabalhadores da educação e da saúde, que há alguns meses protestam pelo fechamento das escolas e a implementação do lockdown nacional.
Os motivos que levam o bolsonarismo e a oposição às ruas, claro, são diferentes, mas têm origem em um mesmo ponto: o desgaste político do presidente. Além da pandemia em si, há a CPI no Senado, que tem se mostrado com potencial suficiente para desestabilizar o capitão (veja reportagem na pág. 24). De resto, a popularidade de Bolsonaro vem derretendo, segundo o Datafolha de maio: a aprovação chegou a 24%, a pior marca do mandato. Acuado, o presidente saiu a campo para reforçar suas alianças políticas — vide o tour com aliados do Centrão pelo Nordeste — e para dar demonstrações de força a sua base mais radicalizada, com os passeios de moto. A oposição, por sua vez, quer testar qual é a real disposição da população de ir às ruas contra o presidente.
A contraofensiva oposicionista já acendeu o sinal de alerta no Palácio do Planalto. Aliados mais prudentes de Bolsonaro, como a ala militar, detectaram o movimento contrário e passaram a alertá-lo sobre o risco de isso incendiar as ruas e prejudicar o avanço das reformas no Congresso, além de dar combustível a discussões sobre impeachment. Já os conselheiros radicais, como os filhos e os deputados mais fiéis, veem na movimentação uma oportunidade de mobilizar a base bolsonarista. “A polarização se acirrará ainda mais. A esquerda brasileira está desesperada e não sabe mais o que fazer”, afirma o deputado Marco Feliciano (Republicanos-SP). O problema do raciocínio é que a reação começou a mobilizar além da esquerda. O Acredito, movimento de renovação política que reúne parlamentares como Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Tabata Amaral (ex-PDT-SP), ergueu na capital federal na terça-feira 25 um boneco inflável de Bolsonaro empunhando uma caixa de cloroquina e vestindo uma capa da morte — deu ao personagem o nome de “Capitão Cloroquino”. Por ora, grupos de direita antibolsonarista, como MBL e Vem pra Rua — decisivos no impeachment de Dilma —, vão ficar longe das manifestações a céu aberto. “Realizar qualquer tipo de aglomeração agora é fazer o jogo do Bolsonaro e agir em favor do vírus”, diz Renato Battista, coordenador nacional do MBL.
Há até agora uma diferença entre Bolsonaro e seus adversários: o presidente lidera os atos de rua, enquanto rivais como Lula e Ciro Gomes (PDT) apoiam a manifestação, mas não colocam as suas digitais. No caso do PT, no entanto, fica evidente o envolvimento do partido com o apoio ostensivo da presidente da legenda, Gleisi Hoffmann, e outros caciques. Para Rafael Cortez, professor de ciência política do Instituto de Direito Público (IDP), as manifestações podem render dividendos eleitorais. “A antecipação ajuda os candidatos a se tornarem o centro dos seus respectivos polos. Quem não ganha capital político antes acaba se tornando eleitoralmente irrelevante”, afirma. O que a sociedade espera, porém, é que a radicalização do governo e da oposição nas ruas não ajude a incendiar o “barril de pólvora” — para usar uma expressão de Guilherme Boulos — sobre o qual está assentado o país neste momento. Já há crises de todo tipo: sanitária, social, econômica e política. O que precisamos é enfrentá-las, não aprofundá-las.
Publicado em VEJA de 02 de junho de 2021, edição nº 2740