A lama com rejeitos de minério da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho, já se espalha pelo Rio Paraopeba e deve chegar ao São Francisco. No seu caminho por terra, ceifou pelo menos 150 vidas — esse era o número confirmado até o fechamento desta edição, na quinta-feira 7. A chance de que haja sobreviventes entre os 182 desaparecidos é quase nula. Nos últimos dias, junto com a copiosa contagem de mortos, as investigações sobre as causas da catástrofe provocaram novo choque. Revelou-se que a barragem dera sinais de que tinha problemas. Mais grave, a Vale poderia ter evitado a tragédia humana caso tivesse agido com a prudência e a responsabilidade que se exigem de empresas que operam em atividades de risco.
Entre as mais eloquentes evidências de negligência, está uma troca de e-mails entre funcionários da Vale, da Tüv Süd (companhia alemã que atestou mais de uma vez a estabilidade da barragem do Córrego do Feijão) e de uma empresa responsável pelos piezômetros, instrumentos que medem a pressão interna na barragem. Reveladas pela GloboNews e confirmadas por VEJA, as mensagens apreendidas pela Polícia Federal foram trocadas em 23 e 24 de janeiro, os dois dias que antecederam o rompimento, e discutiam indicações de perigo fornecidas por piezômetros instalados no reservatório. A ameaça apontada pelos instrumentos era tal que o engenheiro Makoto Namba, da Tüv Süd, não titubeou ao ser questionado pelo delegado da PF sobre o que faria se seu filho estivesse trabalhando na barragem: ele ligaria imediatamente para o filho e mandaria que deixasse o local. Namba foi preso em 29 de janeiro junto com seu sócio André Yassuda, que também assinou o laudo de estabilidade quatro meses antes do rompimento. A descoberta de uma nascente que desaguava na barragem e o aumento de pressão atestado pelos piezômetros mostram que o reservatório estava acumulando água, o que pode conduzir à temida liquefação dos resíduos sólidos, desmanchando as paredes externas. O desastre em Mariana, que há três anos matou dezenove pessoas e provocou devastação ambiental, teve a mesma causa. A Vale poderia — aliás, deveria — ter acionado seu plano de emergência, evacuando o centro administrativo que foi soterrado pela lama e as demais áreas no caminho do deslizamento. Não o fez. Por isso, a lista de mortos deve passar de 300.
A Barragem I do Córrego do Feijão já vinha apresentando aumento do nível da água desde o ano passado, com uma agravante: os bolsões de água haviam se formado perto da parede. As informações constam do relatório emitido pela Tüv Süd — o mesmo que, estranhamente, diz que a barragem é estável. Um segundo elemento que propicia a liquefação também estava presente: o material fofo, como a areia, que é o principal ingrediente do rejeito do minério de ferro. A combinação de água com areia às vezes permanece estável por um bom tempo, mas também pode desandar instantaneamente, caso passe por uma vibração causada por um evento sísmico, pela passagem de um caminhão pesado ou por uma explosão.
Elemento determinante da liquefação, a vibração é o chamado “gatilho”, que mistura rapidamente água, terra e rejeito, formando a lama que soterrou as instalações da Vale e parte de Brumadinho. Ainda não se sabe qual terá sido o gatilho — sismo, caminhão, explosão? — que levou abaixo a Barragem I. O relatório da Tüv Süd, no entanto, já recomendava a suspensão de detonações nas minas próximas — recomendação que foi ignorada. A Vale confirmou a VEJA que fazia, em média, 23 explosões por mês, cinco no Córrego do Feijão, bem perto da barragem, e dezoito em Jangada, a cerca de 5 quilômetros.
ACHADOS PERIGOSOS
A Tüv Süd apontou problemas de drenagem e lacunas no histórico da barragem (leia trechos do relatório acima). Avaliou ainda a segurança geral da barragem na hipótese de uma condição adversa chamada “não drenada” (ou seja, o acúmulo excessivo de água, que de fato estava lá). O resultado foi estarrecedor. A empresa calculou o fator de segurança (FS) da Barragem I. Trata-se de um índice que vai de 1 a 2,5 — quanto mais baixo, maior o perigo, sendo 1 o ponto de ruptura de uma barragem. Um nível “confortável” não pode ser inferior a 1,5, e três seções da barragem estavam abaixo disso — em uma delas, o FS era de alarmante 1,09. “Aparentemente, tanto os engenheiros da Tüv Süd quanto os da Vale consideraram que o pior cenário jamais aconteceria. Mas aconteceu”, afirma um engenheiro geotécnico especialista em barragens que analisou o relatório.
A Vale operava como se o tal gatilho estivesse completamente fora do horizonte das possibilidades. Amparava-se, nesse ponto, na postura dúbia da certificadora Tüv Süd, que, ao mesmo tempo em que apontava todas as falhas e precariedades que provavelmente levaram à catástrofe, insistia em classificar a barragem como “estável”. Em depoimento à PF, Namba relatou ter sido pressionado por um representante da Vale. “A Tüv Süd vai assinar ou não a declaração de estabilidade?”, instava esse funcionário da Vale. O engenheiro considerou que a pergunta trazia embutida a ameaça de cancelamento do contrato. Assinou, com a condição de que a mineradora seguisse dezessete recomendações feitas pelo relatório. A empresa não se manifestou com clareza sobre o cumprimento desses itens. A recomendação de que novos piezômetros fossem instalados, porém, estava sendo posta em prática quando o desastre aconteceu. Quatro operários da empresa Fugro, que desempenhava a tarefa, morreram (leia o relato de um sobrevivente abaixo).
Na ausência de fiscalização efetiva do governo, atestados de segurança do setor de mineração dependem de agências contratadas pelas próprias mineradoras, com os tristes resultados que se atestam no caso de Brumadinho. O engenheiro civil Antonio Lambertini, especialista em segurança de barragens, conta que foi demitido de uma prestadora de serviços da Vale em 2012 por se recusar a assinar o projeto executivo de uma das fases de expansão da barragem de Itabira (MG), vinte vezes maior que a de Brumadinho. Na inspeção, ele constatou trincas e problemas na permeabilidade do dique, que não funcionava. “Um diretor da Vale me disse para não me preocupar, pois ele morava com os filhos abaixo da barragem”, disse Lambertini. “Parece que isso é uma cultura da Vale. Eles têm a plena convicção de que não acontecerá nada de errado, apesar das evidências.”
A Vale não pode alegar que foi pega de surpresa, como afirmou seu presidente, Fabio Schvartsman, logo após o acidente. Conhecia bem os riscos, tanto que vinha tentando remediá-los. No meio do ano passado, contratou uma empresa para drenar a água que vinha se acumulando na barragem. “A barragem não caiu de uma hora para outra”, diz um ex-funcionário que trabalhou por mais de uma década na mineradora. “Era uma bomba, e a Vale tentou desarmá-la sem avisar os vizinhos.” No lugar da postura conservadora que uma atividade de risco como a mineração exige, a empresa fez a aposta temerária de que não haveria “gatilho” para precipitar o desastre. E não acionou as sirenes de alerta que poderiam ter salvado a vida de funcionários e moradores. Sirenes que, ao contrário do que afirmara Schvartsman, não foram engolfadas pelo mar de lama.
Quando o chão desaparece
O operador de sonda Lieuzo dos Santos, de 55 anos, estava bem no topo da barragem quando tudo veio abaixo. A empresa em que ele trabalha fora contratada pela Vale para abrir os furos onde seriam instalados novos piezômetros, aparelhos que medem a pressão do reservatório — e, por tabela, indicam se o nível de água está aumentando no interior da barragem (o que, sabe-se agora, estava de fato acontecendo). Era quase hora do almoço e Santos tinha acabado uma perfuração: um buraco de 68 metros de profundidade com 12 centímetros de diâmetro. Desligou a sonda e desceu do equipamento. “Quando coloquei o pé no chão, percebi a sonda deslizar. Pensei que eu tivesse mexido em uma alavanca errada, mas logo notei o chão cedendo. Só deu tempo de me afastar da sonda, para que ela não me atingisse”, disse a VEJA, de sua casa, em Ilha Solteira, no interior de São Paulo. Depois disso, Santos só se lembra de acordar com uma dor lancinante na perna. Por sorte, ele não foi tragado pela enxurrada de lama, caindo sobre uma porção de terra firme. Com o fêmur fraturado na altura do quadril e ferimentos em outros pontos da perna, não conseguia erguer-se e por isso não era visto pelos helicópteros. O socorro chegou umas cinco horas mais tarde, quando os bombeiros começaram as buscas em solo. Depois de uma semana no hospital, Santos voltou para casa, onde deve convalescer nos próximos seis meses, até poder retornar ao trabalho. Os quatro colegas que trabalhavam com ele naquele dia estão desaparecidos. A sonda, equipamento pesado, também não foi encontrada. “Nasci de novo”, Santos não cansa de repetir.
Publicado em VEJA de 13 de fevereiro de 2019, edição nº 2621
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