A trajetória do cacique Damião Paridzané era reconhecida pela persistência com que liderou a retomada da aldeia onde nasceu, após ter sido retirado do local ainda adolescente, na ditadura militar. Ancião da tribo xavante que vive na Terra Indígena Marãiwatsédé, no norte de Mato Grosso, ele virou a principal voz política de seu povo. Já se reuniu com lideranças no Congresso, participou das conferências climáticas Eco-92 e Rio+20 para falar das invasões de sua terra e foi agraciado em 2014 com o Prêmio Direitos Humanos, entregue pela então presidente, Dilma Rousseff.
Essa reputação pode ter sido irremediavelmente arranhada por uma operação da Polícia Federal ocorrida na semana passada. Veio à tona a imagem de um cacique corrompido por dinheiro, cooptado por uma espécie de milícia que se formou para explorar a própria aldeia. Sobre ele recai a suspeita de lucrar milhões de reais com o arrendamento de porções de terra para a criação de gado, o que é proibido pela Constituição e pelo Estatuto do Índio. Batizada de Res Capta, a operação da PF apontou que ele recebia 889 000 reais por mês, com base em depoimentos do coordenador regional da Funai e um de seus auxiliares, que foram presos.
As evidências contra o cacique são contundentes. Um pecuarista disse que pagava diretamente a ele pelo arrendamento. Depósitos de outros fazendeiros foram identificados pela PF. Quinze proprietários rurais estão sendo investigados. Segundo o delegado Mário Ribeiro, Damião admitiu em depoimento que ficava com 200 000 reais mensais para despesas pessoais, sem revelar para onde iria o restante. A Justiça bloqueou as suas contas bancárias e impôs diversas medidas restritivas — se voltar a arrendar terras ou mantiver contato com os demais investigados, ele pode ser preso (são inimputáveis apenas os índios isolados, que não têm condições de entender o padrão de moral dos brancos, o que não é o caso do cacique).
As desconfianças da PF sobre Damião vêm desde 2017, quando começaram a ganhar corpo as denúncias de arrendamentos. Aumentaram três anos depois, quando o cacique chegou para prestar depoimento em uma caminhonete Toyota Hilux SW4 avaliada em 380 000 reais. Damião disse que o veículo era dele, mas os agentes descobriram que o veículo estava no nome de um arrendatário e que poderia ser um “presente”. Por outro lado, a tribo vivia situação “de penúria”, sem comida nem assistência. “Fica nítido que o dinheiro não estava indo para a aldeia”, diz o delegado Ribeiro.
O escândalo acrescentou um novo capítulo a já bastante conturbada história de Marãiwatsédé. Nos anos 50, quando Damião era criança, fazendeiros levaram dezenas de índios à morte deixando roupas contaminadas com varíola na mata. No êxodo provocado na época da ditadura, Damião embarcou em um avião da FAB em agosto de 1966, aos 14 anos, e foi levado com sua tribo para a Missão Salesiana de São Marcos, a mais de 500 quilômetros. Quando os índios se organizaram para retornar, na década de 80, havia uma pequena cidade com casas, sítios e posto de gasolina dentro da terra indígena. A comunidade foi retirada após decisão do Supremo Tribunal Federal em 2012 — uma operação que durou mais de um ano. Pouco tempo depois, apareceram os sinais de que a pecuária ali se intensificava. Hoje há 70 000 cabeças de gado (atividade completamente irregular), o que tem ampliado a degradação da pouca mata que resta.
O problema se agravou com a chegada de um novo coordenador regional da Funai no governo Jair Bolsonaro. Suboficial da reserva na Marinha, Jussielson Gonçalves Silva assumiu em 2020 e, segundo a PF, tentava profissionalizar o esquema criminoso. A investigação interceptou um telefonema no qual o militar incentiva o cacique a concentrar o negócio em poucos e ricos arrendatários para aumentar o faturamento. “Até o ano que vem, o senhor tem de estar ganhando 1 milhão e meio”, dizia. Ele contava com a ajuda de um policial militar licenciado e um ex-PM — este condenado por tortura, extorsão e tráfico de drogas. É em meio a essa aldeia de problemas que o cacique Damião, se provadas as suspeitas da PF, pode ter maculado para sempre sua biografia.
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782