Nasci completamente surda. Somente há um mês, após receber um implante coclear, aparelho que converte o som em impulsos elétricos que estimulam o nervo auditivo, é que comecei a ouvir. Até chegar a esse ponto, porém, foram inúmeras idas e vindas. Minha mãe teve rubéola durante a gravidez e, como foi assintomática, não pôde prevenir que a doença me atingisse ainda na gestação. Nunca houve um tratamento para recuperar a audição, já que é um sentido que nunca tive. Na infância, o caminho foi a oralização por meio de fonoterapia. Como não convivia com surdos, não aprendi a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Há dez anos, já havia tentado colocar o implante, mas não me adaptei. Fiquei traumatizada e sem coragem de tentar de novo. Mas a pandemia veio e me trouxe muita dificuldade em me comunicar, por causa das máscaras. Esse foi um dos motivos de buscar o implante pela segunda vez. Fiz a operação pelo SUS. Quase ninguém no Brasil faz o procedimento no particular, pois só o aparelho sai por 50 000 reais e os custos totais podem passar de 150 000 reais. Foi um processo longo para ver se eu me encaixava nos pré-requisitos: esse recurso é preconizado apenas a quem está no fundo do poço da surdez. Como trabalho com TI, minha empresa entrou no esquema de home office e eu consegui me mudar há dois meses de Contagem (MG), onde morava, para São Paulo.
Depois de colocar o implante, o primeiro som que ouvi não foi nada agradável: um apito agudo que me incomodou. Minha fonoaudióloga disse que eu teria de aprender a conviver com ruídos ruins, inclusive o martelo da obra no apartamento do andar de cima, uma vez que não posso somente “querer” ouvir sons bons. Hoje, o barulho que mais odeio é o de moto sem escapamento: até sinto dor fisicamente ao ouvi-lo. Dessa vez, porém, estou me adaptando melhor porque estou mais preparada psicologicamente e encontrei um estímulo especial: a música. Cada som é uma novidade para mim. Meu cérebro está aprendendo a ouvir e ainda tenho dificuldade em distinguir os elementos. É uma mistura de emoções, legal e incômodo ao mesmo tempo — como estar numa montanha-russa. Nas últimas semanas, comentei o que achava ao escutar canções famosas pela primeira vez, em uma série de posts que viralizaram no Twitter. Ouço com o fone de ouvido em cima do implante, e não na orelha, pois é o aparelho que “ouve”, não meu ouvido. Até a semana passada, a melhor canção tinha sido Starman, do David Bowie. Nesta semana, curti The Lazy Song, do Bruno Mars. Minha percepção muda conforme meu cérebro vai organizando os sons e descobrindo coisas novas. A suavidade e a repetição me atraem. Música clássica, por ser muito complexa, é difícil. A distorção da guitarra me incomoda. Geralmente, os graves são melhores de ouvir. Gostei de ouvir funk e pagode e me deu vontade de dançar. Mas a música eletrônica é a que mais me agrada, por causa das batidas repetitivas.
Já assisti a vários filmes que mostram surdos. O Som do Silêncio achei problemático, porque o implante do personagem parece algo milagroso e rápido de fazer. O que não é verdade. Indico o francês A Família Bélier para quem quiser entender mais sobre o mundo dos surdos. Agora, quero assistir a No Ritmo do Coração, indicado ao Oscar. Desejo também conscientizar as pessoas a respeito do “capacitismo”, que é um tipo de discriminação com pessoas com deficiência. Quando descobrem que sou surda, acham que não sei ler ou escrever. Eu me sinto ofendida quando me chamam de muda: no meu caso, não há nenhuma associação com a surdez. Sempre tive o sonho de fazer intercâmbio, mas achava impossível. Agora estou mais próxima de realizá-lo.
Isabela Coelho em depoimento dado a Felipe Branco Cruz
Publicado em VEJA de 23 de março de 2022, edição nº 2781