As últimas décadas da política brasileira foram permeadas de exemplos sobre como questões reais de poder influenciaram a interpretação e a defesa da Constituição. Um debate recorrente ocorreu em torno da possibilidade de um réu ser preso após condenação em segunda instância. Provocado reiteradamente, o Supremo Tribunal Federal tomou diferentes decisões sobre o tema em 2009 (pela inconstitucionalidade), em 2016 (pela constitucionalidade) e em 2019 (voltando ao entendimento firmado dez anos antes). Esse vaivém ocorreu sem que o artigo 5º da Constituição, que prevê a prisão somente após a condenação transitada em julgado, tivesse sofrido qualquer alteração — apesar de o Congresso ter debatido propostas de emenda constitucional que tinham como pano de fundo as prisões do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e de outros réus da Lava-Jato.
Esse e outros casos de como as Cartas Magnas foram (re)interpretadas ao sabor das influências políticas ao longo da história são lembrados no excelente O Colapso das Constituições do Brasil: uma Reflexão pela Democracia (Editora Fórum), livro recém-lançado pelo jurista Manoel Carlos de Almeida Neto, professor da Faculdade de Direito da USP. O autor diz que, para além da Constituição escrita, é preciso levar em consideração o que chama de “fatores reais de poder”. Segundo Almeida Neto, eles criam uma espécie de Constituição material paralela, “não escrita, sempre viva, caótica e muitas vezes incontrolável, com potência suficiente para modificar a realidade político-jurídica tanto para o bem-estar e restauração do Estado democrático como para usurpá-lo em deploráveis golpes”.
Sabe-se que o país teve sete Constituições, mas Almeida Neto amplia a análise para além dos documentos que levaram a designação formal. Na realidade, de acordo com as contas do autor, foram catorze textos com natureza constitucional e supremacia no ordenamento jurídico, publicados por fatores reais de poder, investidos de força constituinte de fato ou de direito no objetivo de instaurar uma nova ordem no Brasil. Do Império aos dias atuais, o livro dedica um capítulo a cada um desses catorze textos, para demonstrar quais circunstâncias levaram a essas mudanças.
Imposto pela ditadura militar em 1964, o Ato Institucional Número 1 é um exemplo clássico de texto constitucional que foi “simplesmente decretado”. Apesar de formalmente ter mantido em vigor a Carta Magna de 1946, elaborada pelo governo de Eurico Gaspar Dutra, o AI-1 diminuiu substancialmente as garantias constitucionais e, para Almeida Neto, representou uma mudança de fato na ordem social. No livro, o autor detalha outros dois atos institucionais da ditadura como novos textos constitucionais decretados pelo regime após serem impulsionados por interesses específicos do contexto da época: o AI-2, de 1965, que ele chama de “Carta Autoritária” (fixou eleições indiretas para presidente, dissolveu partidos políticos e promoveu intervenções no Judiciário) e o AI-5, de 1968, referido como “Carta Ditatorial” — que aprofundou a repressão, com o fechamento do Congresso, a cassação de mandatos, a suspensão de garantias e o estabelecimento da censura prévia.
Almeida Neto chama esse tipo de ruptura de “inconformismo inconstitucional”, que acaba sempre levando a movimentos, legítimos ou não, de alteração, supressão ou revogação da Carta Magna. “No Império ou na República, na democracia ou na ditadura, por aqui sempre existiram, no passado e no presente, grupos organizados de poder que objetivam a queda da Constituição vigente, motivados por progressismo, conservadorismo ou autoritarismo”, escreve o autor.
Nem sempre por meio da força, porém, ocorre a intervenção. No prefácio do livro, José Sarney relembra a convocação feita por ele da Assembleia Constituinte, que seria presidida por Ulysses Guimarães (MDB). As memórias do ex-presidente corroboram a tese de Almeida Neto: “Havia finalmente um consenso nacional a desejá-la — como já houvera em 1934 e 1946 — e as condições, que lhe dei, de ter sua independência garantida. Mas as correntes internas a carregaram de interesses pessoais e corporativos. Fiz então o difícil aviso de que ela continha o germe da ingovernabilidade”.
Ex-secretário-geral do STF e do Tribunal Superior Eleitoral, Almeida Neto faz ainda um alerta importante na obra: “É imprescindível permanente atenção para identificar os movimentos autoritários que sempre andaram pelas ruas do Brasil e que, camuflados em bandeiras clássicas do conservadorismo, em proteção da ordem, moralidade, segurança, liberdade, propriedade, família, pervertem esses preciosos anseios sociais para assaltar a soberania popular, reprimir os direitos civis e políticos e subordinar o Legislativo e o Judiciário à hegemonia do Executivo”. Nada mais atual.
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782