Cem dias após as enchentes, reconstrução do Rio Grande do Sul segue em ritmo lento
Cerca de 90% dos municípios continuam em estado de emergência ou de calamidade. As moradias prometidas nem sequer saíram do papel
Com 4 600 habitantes no Censo de 2022, Muçum é a porta de entrada leste da microrregião do Vale do Taquari. A paisagem exuberante é o seu principal ativo turístico. Situado no fundo de um cânion da Serra Geral, no ponto em que o Rio Taquari faz uma curva de quase 360 graus em direção ao sul, pontilhada de praias de cascalho e corredeiras, o município ostenta o título de Princesa das Pontes. A mais vistosa é a Rodoferroviária Brochado da Rocha, um colosso de 289 metros de extensão e sete arcos, que liga Muçum a Roca Sales. A roda do infortúnio da pequena cidade começou a girar em 23 de agosto de 2023, quando o pior temporal de granizo de sua existência destelhou quase 1 000 casas e danificou todos os prédios públicos. Em 4 de setembro, um ciclone extratropical fez o Taquari inundar 80% da zona urbana, deixando dezoito mortos. Em novembro, uma nova cheia atingiu 70% da área. Finalmente, em 29 de abril deste ano, quando lançou sua fúria sobre Muçum pela terceira vez, o Taquari formou com o afluente Guaporé um torniquete de água em torno da área central. Vias, praças e prédios públicos submergiram em uma torrente de ondas barrentas, que espalharam destruição pela cidade. A localidade ficou dias sem luz, internet e ligação por terra com o restante do estado. O episódio pode ser considerado um marco zero da tragédia que se abateria nos dias seguintes sobre todo o Rio Grande do Sul, quando as águas obrigaram mais de meio milhão de pessoas a abandonarem suas casas e deixaram pelo caminho 182 mortos e um rastro de destruição como nunca antes se vira na história do estado.
Passados 100 dias do desastre climático, Muçum convive com bairros arrasados, lojas fechadas e escolas em ruínas. Estradas inteiras foram destruídas. A sucessão de eventos extremos levou cerca de 1 000 habitantes, quase um quarto do total, a fugirem de lá. Caminhões e caçambas ainda recolhem resíduos nas ruas. Nas encostas de até 500 metros de altura que circundam o Centro, cicatrizes cor de barro riscam o verde da vegetação. Na praça central, varrida pela última inundação, um casal de urubus alojou-se no forro de um prédio abandonado e, de tempos em tempos, pousa nos canteiros em busca de alimento. O cemitério foi severamente atingido. Até hoje, não é possível enterrar ninguém ali. O guarda municipal Jairo Marobin, de 56 anos, andava entre os destroços dos jazigos quando a reportagem de VEJA visitou a cidade. Para ele, o local, agora um amontoado de escombros, funcionou como uma barreira para a contenção das águas. “O cemitério serviu de muro, os mortos salvaram Muçum”, assegura.
Muita coisa, no entanto, não foi salva no Rio Grande do Sul. Ao fim do pesadelo climático, além dos mortos e desalojados, havia 2,3 milhões de pessoas afetadas de alguma forma. A infraestrutura gaúcha foi dilapidada do litoral ao oeste do estado. Os esforços empreendidos desde então já recuperaram uma parte considerável do que foi devastado, mas há muito a ser feito. Existem ainda 2 846 pessoas morando em abrigos em 32 municípios. Nove em cada dez cidades continuam em situação de emergência ou de calamidade pública. O Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, continua com as pistas interditadas — a previsão é de retorno parcial das operações em outubro. A mobilidade pelo estado ainda esbarra em 38 trechos de rodovias interditados em razão da destruição pelas águas (veja o quadro).
Apesar das promessas feitas em meio à tragédia, as autoridades ainda não conseguiram oferecer a resposta esperada, no ritmo de urgência necessário. Em visita a São Leopoldo, em maio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou a cada desabrigado com quem conversou que “todo mundo que perdeu a casa vai ter sua casinha”. Até agora, nenhuma foi entregue. Isso a despeito de o governo, algumas semanas depois, ter baixado portaria permitindo a compra de casas prontas para desabrigados. A demanda era de 42 000 unidades. Em meados de julho, outra portaria autorizou contratar 11 500 moradias e, como incentivo para que fossem construídas “no menor tempo possível”, fixou-se um bônus de 5% para projetos finalizados em dez meses. Nada aconteceu. Como recurso emergencial, o governo do Rio Grande do Sul e as prefeituras apostaram no aluguel social e nas moradias emergenciais. A instalação de 500 casas temporárias, já mobiliadas, montadas em um formato parecido ao de contêineres, que são reaproveitáveis para outras eventuais catástrofes, começou só na semana passada, com trinta unidades em Encantado.
Um dos motivos para as pessoas atingidas não terem ainda um novo teto é um velho conhecido da vida brasileira: a lentidão da máquina estatal. O problema já havia sido reconhecido pelo ministro da Reconstrução, Paulo Pimenta, em entrevista a VEJA em julho, quando classificou a burocracia de “dilacerante”. O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), vai na mesma toada. “Não existe ainda compra de imóveis. As portarias que regulamentaram esse processo foram muito demoradas”, afirma. O governador Eduardo Leite (PSDB) segue linha semelhante no discurso. “Muitas medidas anunciadas têm regulamentação complexa para acessar recursos e acabam não sendo efetivadas, o que gera um descompasso entre o tamanho do anúncio e o que efetivamente acontece”, diz.
A dificuldade de acesso aos benefícios na ponta é uma crítica também do setor produtivo. Pedro Albrite, CEO e fundador da O2, que gere as finanças de 75 empresas de pequeno a grande porte, critica o rigor da análise de crédito, dada a excepcionalidade da situação, e diz que muitas empresas não receberam os incentivos públicos, o que pode desencadear uma onda de falências e recuperações judiciais. “A ajuda do Estado é justa já que o problema de muitas empresas se dá pela má estruturação dos sistemas de água, esgoto e prevenção contra enchentes das prefeituras”, defende. Outro exemplo citado por Leite é o do incentivo à manutenção de emprego, um aporte de recursos federais para pagamento de parte dos salários de trabalhadores. “A regulamentação veio de forma tão complexa e restritiva que, do 1,2 bilhão de reais anunciado, pouco mais de 100 milhões de reais foram efetivamente acessados”, conta.
As críticas à demora para chegar o dinheiro federal são, em parte, pela grandeza da dependência de estado e prefeituras. O governo Lula prometeu mais de 90 bilhões de reais, sendo que 77 bilhões seriam em novos recursos — desse total, apenas 22 bilhões de reais foram de fato liberados até a última semana. Já as ações do estado somam 1,54 bilhão de reais, a maior parte no programa Volta por Cima (240 milhões de reais), que prevê o pagamento de 2 500 reais em parcela única a cada família atingida pela tragédia. Anunciado pela gestão estadual como uma espécie de Plano Marshall (iniciativa dos EUA para reconstruir países aliados após a Segunda Guerra), o Plano Rio Grande só agora abriu um chamamento público para receber projetos das cidades.
Os municípios tentam se virar como podem. O caixa, que já não era folgado, ficou menor. Em Porto Alegre, a prefeitura diz que, apenas com a suspensão de cobrança do IPTU de zonas atingidas, a renúncia fiscal é de 180 milhões de reais. A arrecadação com ICMS e ISS, duas das principais fontes de receita, desabou. O fechamento do aeroporto também impactou o orçamento público. Com isso, intervenções importantíssimas, como a recuperação do sistema de contenção do Lago Guaíba, nem começaram. A previsão é iniciar neste mês obras como a reconstrução de dois diques (de um total de quatro), a reestruturação de comportas e casas de bomba e a revisão do muro da Avenida Mauá, que não foi capaz de segurar as águas. “O sistema de proteção tem que ser revisado na sua totalidade, porque ele se mostrou absolutamente insuficiente”, diz Melo.
A economia gaúcha, que teve um baque profundo na tragédia, ainda convive com um horizonte incerto. A indústria teve em maio a queda mais brusca da série histórica (-26,2%). Os setores de comércio e serviços, paradoxalmente, se sustentaram graças à demanda criada pela tragédia. Os supermercados encheram-se de clientes que compraram um pouco a mais, para fazer doações ou estocar alimentos, com medo do que estava por vir. Móveis, eletrodomésticos e carros perdidos foram repostos em junho e julho, além do conserto de bens danificados. A retomada, porém, foi dependente de seguros privados, poupanças e da injeção de recursos públicos. “O que a gente não sabe é se isso se sustenta em um prazo maior ou é só o efeito da recomposição”, afirmou Martinho Lazzari, economista do Departamento de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul. A incerteza vem da dúvida quanto à capacidade das empresas de retomar a produção a pleno nos meses de agosto e setembro e à continuidade das políticas de transferência de renda aos cidadãos, assim como das dificuldades logísticas com estradas rompidas e as pistas do aeroporto de Porto Alegre fechadas. Outra preocupação é em relação à agropecuária, que representa entre 8% e 10% do PIB. Os grãos de soja, milho e arroz, por uma questão sazonal, não foram tão afetados pela cheia. O cultivo de trigo já não teve a mesma sorte. Para as próximas safras, a fertilidade dos solos que foram encharcados é uma grande interrogação para os agricultores. O desemprego também põe em dúvida a capacidade de a economia se reerguer rapidamente. Em maio e junho, mais de 30 000 postos de trabalho foram cortados.
O turismo está entre os setores econômicos mais impactados. Chegar à Serra Gaúcha, por exemplo, ainda é difícil. Sem aeroporto em Porto Alegre, a alternativa são os terminais regionais, que absorvem apenas 15% da demanda. Além disso, um dos caminhos do aeroporto de Caxias do Sul às estâncias está interrompido devido ao desabamento de uma ponte. “Em julho e agosto, a maior parte do público é o gaúcho, que fica menos tempo que visitantes de outros estados. Passada a alta temporada, logo sentimos uma queda expressiva, diretamente ligada à inoperância do Salgado Filho”, relata Daniel Hillebrand, presidente do Conselho de Turismo da região das Hortênsias, que abrange Canela, Gramado e outras cidades turísticas. Apenas em Gramado, houve 90% de cancelamentos em maio e junho e 50% em julho. Os empreendedores tentam vender pacotes para agências de estados próximos, como Santa Catarina e Paraná, e países vizinhos como o Uruguai. Em Gramado, a prefeitura também está tendo de resolver um assustador afundamento de solo em um bairro, que obrigará à desapropriação de 31 imóveis. Segundo a administração municipal, no entanto, esse problema não prejudica a área turística de Gramado, que não foi afetada pelas chuvas.
Após tragédias desse tamanho, é sempre muito difícil a retomada. Catástrofe de maior escala, mas em alguns pontos parecida com a gaúcha (fenômeno climático na origem dos alagamentos, presença massiva de corpos de água e estrutura de contenção deficiente), a destruição provocada pelo furação Katrina em Nova Orleans, em 2005, exigiu dez anos de esforços. No Brasil, após décadas de negligência com infraestrutura, por interesses políticos, restrições orçamentárias e a típica burocracia estatal, não há liberação extraordinária de verbas que compense o despreparo para gerir projetos em larga escala. “Quando não há capacidade gerencial para obras, não basta ter dinheiro sobrando para uma emergência. Os recursos aparecem, mas as obras não acontecem”, avalia Gustavo Fernandes, professor do Departamento de Gestão Pública da FGV/EAESP. Segundo ele, é preciso criar planos de gestão de crise a longo prazo que incluam tanto reações rápidas quanto a prevenção de estragos.
A volta à normalidade nos pampas, infelizmente, vai demorar. Em alguns casos, nada será como antes. Como na pequena Muçum, onde o prefeito Mateus Trojan (MDB), de 29 anos, enfrenta o desafio de convencer a população a transferir suas casas para longe das áreas de risco. Ele estima ser necessário reconstruir 276 moradias. Na escala de um município pequeno, é como ter de mudar a cidade de lugar num prazo curto de tempo. “Estamos no começo de uma retomada. Há uma mudança de cenário de pessimismo para uma visão de evolução nessa reconstrução”, prega Trojan. O amor do gaúcho pelo seu estado e a solidariedade dos brasileiros ajudaram a amenizar o momento mais agudo do tormento. Mas o país precisa definitivamente tirar lições dessas tragédias para que elas não mais se repitam. No estado que convive ainda com tantas cicatrizes, há muito que fazer. O Rio Grande do Sul não pode ser esquecido.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2024, edição nº 2905