A um mês do julgamento no Tribunal Superior Eleitoral que o tornaria inelegível por oito anos, em junho de 2023, Jair Bolsonaro decidiu dar uma recuada e tirar o time de campo. Temeroso de que qualquer piscadela pudesse complicar ainda mais seu delicado quadro na Corte, ele pediu ao filho Flávio, senador pelo PL fluminense, que abandonasse o rol dos pré-candidatos à prefeitura do Rio de Janeiro, pleito que promete grandes embates até outubro deste ano que mal começou. Àquela época, pesaram também as incertezas que pairavam sobre a delação que seu ex-ajudante de ordens, Mauro Cid, negociava com a Polícia Federal. Sair de cena, como se viu, não evitou um mar de más notícias para o ex-presidente. Mas a passagem do tempo vem mostrando que ele mantém influência em seu berço político, onde o clã volta a se mexer para tentar dar as cartas — um movimento comandado agora por Flávio, o rebento Zero Um, em busca do protagonismo amplamente perdido.
As primeiras investidas foram no sentido de sedimentar uma maior presença no governo do aliado Cláudio Castro, também do PL. Depois de fazer pressão por espaço, Flávio conseguiu emplacar dois nomes de seu círculo em secretarias criadas especialmente para acomodar suas indicações — uma solução salomônica do governador para não ter de abrir mão do leque de políticos de todos os naipes que instalou no Palácio Guanabara. Para a pasta de Defesa do Consumidor, ele escalou Gutemberg de Paula Fonseca, um velho conhecido de Flávio, que já exerceu outros cargos sob a indicação do padrinho. O passo mais ousado, porém, se deu na Segurança Pública, que voltou a unir as polícias Civil e Militar embaixo de um único guarda-chuva. Preocupado com a popularidade em baixa, Castro recorreu a Flávio, muito bem conectado nessa área ao mesmo tempo espinhosa e estratégica, que trouxe à baila a indicação de Victor Cesar Carvalho Santos. Delegado da PF, ele esteve à frente da Superintendência do Distrito Federal durante a gestão Bolsonaro. “O jogo é nacional e, no Rio, o líder da direita é o Flávio Bolsonaro”, afirma Gutemberg, evidentemente feliz com a cadeira que lhe foi reservada.
Nas últimas semanas, os Bolsonaro passaram a trabalhar com mais vigor por uma ideia que já semeavam havia um tempo: o único nome do espectro à direita a figurar na cédula da próxima contenda eleitoral deveria ser o de Alexandre Ramagem, ex-presidente da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e aliado de primeira grandeza de Jair. As legendas que fornecem sustentação ao governo de Castro vinham defendendo candidaturas próprias, o que, na avaliação de Flávio, pulverizaria o eleitorado, facilitando demais a vida do atual prefeito, Eduardo Paes (PSD), na briga pela reeleição. Ainda em dezembro, Castro se reuniu com dirigentes do próprio partido, além de uma turma de União Brasil, MDB, Solidariedade e PP, no Palácio Laranjeiras, a residência oficial. Saiu do encontro com a sensação de dever cumprido, garantindo a pessoas de sua confiança que havia convencido os presentes a dar apoio conjunto a Ramagem. “Faltam só detalhes, mas está tudo praticamente certo”, afirma um dos envolvidos nas negociações.
As arestas estão sendo gradativamente podadas nas frequentes conversas que Flávio vem travando com o governador. Os dois vêm se aproximando, a ponto de embarcarem juntos e animados para a posse do novo presidente da Argentina, Javier Milei, e trocarem constantemente ideias. Visto como um político com mão mais hábil para articulações do que o pai, o primogênito (que ainda pode ter dores de cabeça caso o Superior Tribunal de Justiça acate pedido do Ministério Público do Rio para reiniciar as investigações sobre a rachadinha) tem defendido a tese de que é preciso baixar o tom e se apresentar ao eleitor com feições menos raivosas do que as observadas nos ataques aos Três Poderes, há um ano. Atolado em uma aguda crise de segurança, com o Rio sobressaindo em indicadores negativos (leia a reportagem na pág. 38), Castro, que até outro dia tentava descolar sua imagem do bolsonarismo, elogiando Lula além do esperado, agora abraça o clã, que desfruta de boa percepção do eleitorado nessa seara.
A mudança de postura do governador, que acaba de ter o nome novamente arrastado para uma investigação que apura desvios no caixa estadual e os sigilos quebrados, ocorreu depois que conselheiros próximos o convenceram a não desembarcar da nau bolsonarista, sob pena de ficar isolado, assim como aconteceram com outros que tentaram navegar sozinhos nos polarizados mares do xadrez nacional. “Em política é preciso ter lado, e Castro comprou a ideia”, afirma Altineu Côrtes, presidente do PL no Rio. Ao governador restou negociar a nomeação do vice, e aí entrou em cena o deputado federal Marcelo Queiroz (PP), eleito com 70 000 votos empunhando bandeiras em prol dos animais. O perfil, acreditam os castristas, romperia a resistência das mulheres e fisgaria eleitores que tipicamente votam em Paes. O arranjo, contudo, ainda esbarra em opositores variados, como a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, que já manifestou simpatia pelo nome da deputada Chris Tonietto (PL), e o próprio partido de Queiroz. Mirando o palco nacional, o PP quer atrelar a aliança fluminense ao apoio das legendas da coalizão na disputa pela sucessão de Arthur Lira, na Câmara. O indicado seria o deputado federal Doutor Luizinho, também aliado de Flávio e Castro.
Nos planos grandiloquentes dos dois, haveria fôlego para replicar nos 92 municípios do estado a mesma aliança selada na capital, negociando a cabeça de chapa com os partidos da coalizão. As viagens ao interior já foram intensificadas pela dupla, que se empenha em cumprir um extenso calendário de visitas no início do ano, já que o martelo final sobre os nomes precisa ser batido até março. Não faz muito tempo, o governador era evasivo quando lhe perguntavam quais eram os postulantes de sua preferência para ocupar a prefeitura das principais cidades fluminenses. Ouvia-se uma extensa lista, sem nada de assertivo ali. “Não dá para ser lacônico a vida toda. Bem que gostaria, mas não dá”, brincou Castro, em evento no qual deixou clara sua intenção de atuar firme no tabuleiro. Oficialmente, o governador diz que é ele quem arquiteta cada movimento nesse intrincado jogo. Mas nos bastidores do poder todos sabem que, à direita, o balé eleitoral do Rio em 2024 está sendo dançado a dois.
Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874