Em 1998, Luiz Marinho, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, viveu o grande momento de sua carreira. Na época, uma crise atingiu em cheio o setor automobilístico. Numa única tacada, duas montadoras, a Volkswagen e a Ford, anunciaram a demissão de mais de 12 000 trabalhadores. Uma negociação conduzida pessoalmente por Marinho conseguiu reverter a decisão das empresas e as terríveis consequências sociais que a medida certamente provocaria. Vinte cinco anos depois desse feito, o hoje ministro do Trabalho tem defendido propostas que, ao invés de proteger, ameaçam empregos. Na semana passada, por exemplo, Marinho assinou uma portaria estabelecendo que setores do comércio e de serviços só poderão funcionar nos feriados se houver negociação com os sindicatos. Essa exigência, que pode dificultar o funcionamento de supermercados e farmácias, por exemplo, havia deixado de existir em 2021. Diante da repercussão negativa do retrocesso, o ministro decidiu suspender a medida.
Na terça-feira, 21, o presidente Lula deu empuxo a outra proposta polêmica lançada pelo Ministério do Trabalho — a que promete regulamentar o trabalho por aplicativo, especialmente os de transporte de passageiros e de entrega de alimentos. Marinho critica o que chama de “precarização do trabalho das plataformas” e pretende criar o que define como “mínimo de formalização”. Uma das medidas em estudo é criar uma maneira de obrigar as empresas de aplicativo a contratar seus prestadores de serviço. “Eles têm que ter proteção e não concordamos com a ideia de que quem está em aplicativos é empreendedor ou empresário. Ele tem que bancar tudo, saúde, manutenção, alimentação e os custos recaem sobre ele”, defende o presidente da CUT, Sérgio Nobre. Segundo o ministro, a regulamentação precisa garantir um salário mínimo, controle de jornada, previdência e proteção social. “As pessoas se machucam, se acidentam, ou se adoecem não têm nenhuma proteção”, afirma.
O problema é que a proposta vai de encontro à lógica da existência desse tipo de serviço. Os próprios motoristas e entregadores não querem esse tipo de vínculo empregatício. Muitos desfrutam hoje autonomia de horários, possuem outras ocupações ou simplesmente aproveitam o tempo livre para se dedicar a afazeres domésticos e pessoais. Os trabalhadores que usam o iFood ficam a serviço do aplicativo apenas de 13 a 17 horas por semana. Evidentemente, a formalização forçada desses funcionários vai provocar a demissão de muitos deles e será um baque para as empresas. A Uber, por exemplo, já cogitou deixar de operar no Brasil caso essa proposta avance. “Primeiro, que a Uber não vai sair do Brasil. Segundo, se caso queira sair, o problema é só da Uber, porque outros concorrentes ocuparão esse espaço, como é no mercado normal”, disse o ministro em uma audiência no Congresso, confirmando, inclusive, a hipótese de os Correios substituírem os aplicativos. “Eu provoquei os Correios para estudar um aplicativo de forma mais humana para trabalhadores, para poder trabalhar sem a neura do lucro dos capitalistas, que acontece com Uber, iFood”, acrescentou.
Com olhos voltados para as relações trabalhistas do passado, o governo transformou em prioridade a alteração desse sistema — como se não existissem problemas mais urgentes no Brasil, a exemplo da segurança pública, educação, saúde, inovação, transição energética, entre outros. “Nós não queremos que a pessoa deixe de ser autônomo. O que queremos é dar um pouco de seguridade para ele quando o carro quebra, quando a mulher fica doente. Estamos tentando negociar com a Uber. Tudo o que a gente fizer é para garantir emprego para essa gente”, disse o presidente Lula em sua live semanal. Para os especialistas, é mais um retrocesso que está sendo gestado pelo Ministério do Trabalho. “A vantagem do aplicativo está justamente no fato de a pessoa poder decidir o tempo disponível para o trabalho, a aceitação ou não das corridas ofertadas e a forma de execução do serviço”, diz o advogado Donne Pisco, especialista no assunto. “No caso da Uber, a regulamentação pode ser prejudicial para o próprio motorista”, ressalta.
O resultado da negociação de Luiz Marinho junto às montadoras em 1998 mostrou na ocasião a relevância e a necessidade de se ter sindicatos fortes e atuantes. O mundo, porém, mudou. Durante oito décadas, a lei obrigou todos os trabalhadores a destinar um dia de serviço aos sindicatos — fossem eles atuantes ou não. O dinheiro fácil — cerca de 3,6 bilhões de reais por ano — resultou na proliferação desmedida de entidades que supostamente representavam categorias, mas que, na prática, se dedicavam apenas a gerir a fortuna arrecadada muitas vezes em benefício de alguns poucos. Em 2017, a reforma trabalhista acabou com a mamata. As contribuições passaram a ser voluntárias, o que reduziu drasticamente a receita. Luiz Marinho garante que não há hipótese de o governo propor a recriação do antigo imposto sindical — e nem vai precisar.
Aproveitando uma brecha na legislação e com total apoio do Ministério do Trabalho, os sindicatos conseguiram autorização do STF para validar a cobrança da chamada “contribuição assistencial”, um valor que já existia e que voltará a ser pago anualmente por todos os trabalhadores — sindicalizados ou não. O montante será definido por cada categoria, através dos sindicatos, em acordos coletivos. A diferença é que a taxa não será obrigatória. Porém, quem não quiser contribuir, precisará enfrentar o inconveniente de pedir formalmente a devolução do dinheiro. A contribuição voltará a injetar bilhões de reais nos cofres dos sindicatos — o que vai engordar o caixa das entidades sérias e também das entidades nada sérias que fazem da atividade uma profissão lucrativa.
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2023, edição nº 2869